quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O negão de “ventas raciais”

Amigos, na manhã de ontem, quarta-feira, eu estava chegando no bar da esquina para tomar o meu carioquinha, quando vejo sentado no meio fio um negão atípico. Parecendo um personagem de elenco de apoio de alguma ópera épica sobre as campanhas de Cipião na África, com seus quase dois metros de altura, canela fina, tronco largo coberto com uma camisa do Flu já puída, pescoço longo e orelhas de abano, o sujeito estava imensamente desolado. Apoiando-se no pára-choque de um carro estacionado, dava a impressão de que a qualquer momento poderia desabar para o lado, causando um tremor de terra momentâneo. Ao me apoiar no balcão para fazer o meu pedido, ouço - vindos dos garçons, dos lobos e raposas presentes - comentários dispersos sobre o personagem colossal:

- Nunca vi agüentar tanta bebida. Está aqui desde domingo.

- Quando está no auge da bebedeira, berra aos quatro ventos que só vai embora na hora em que conseguir arrancar o aguilhão atravessado no peito que a derrota para o Vasco deixou nele.

- Já vieram a mulher, os filhos, os vizinhos para levá-lo para casa e ele não arreda o pé.

- Já está na hora de chamar a polícia para dar um trato nesse vagabundo!

- Tá precisando é de um chá de cana, isso sim. Vai voltar bonzinho...

- Deixem o negão em paz! É apenas mais um fanático delirante pelo Tricolor mais famoso do planeta! Só quer purgar a tragédia da derrota que, para ele, é um acontecimento de proporções cósmicas, metafísicas! Deixem em paz o negão de “ventas raciais”!

Este último comentário ressoou pelo recinto como uma luz reveladora da eternidade. O timbre de voz de trombeta do apocalipse me era familiar, familiaríssimo. Levantei a cabeça do jornal, em que lia as manchetes do dia, e, ao olhar para o lado, me deparo com a figura irretocável do Tricolor de Lábios Roxos. Sim, o marido falecido da Viúva Botafoguense, mais vivo do que nunca, saboreando seu vinho matinal, participando ativamente da vida pública da cidade, chegara para acabar com os comentários maldosos, a boca pequena, que ameaçavam virar linchamento moral do afrodescendente.

Nesse instante, o negão de “ventas raciais”, como que teleguiado, um Zumbi redivivo pela audição da voz do Tricolor de Lábios Roxos, se levanta da rua e vem, cambaleante porém firme, a passos largos, lentos e pesados em minha direção. As ventas bufavam querendo aspirar todo o ar ao redor. De repente, pára diante de mim e do Tricolor de Lábios Roxos, parece que vai despencar, oscila, vai e vem, e acaba por falar com uma lucidez e uma clareza límpida, em tom de baixo profundo, que contradizem toda a sua trágica figura: Não agüento mais não ganhar clássicos! Este ano perdemos ou empatamos todos os clássicos! O Fluminense precisa de um goleiro, de um goleiro de verdade! E, também, de um zagueirão, daqueles que põem ordem na casa! E o Vasco? Bem, o Vasco vai perder hoje à noite para o Universidad do Chile! Já que o Fluminense não pode ser tetra, o Vasco vai ser eliminado da Sulamericana e não vai ser penta!

Após sentenciar essas palavras em chave profética, o negão pede uma dose de cachaça e entabula um papo alegre com o Tricolor de Lábios Roxos que, a essa altura da manhã, já estava pedindo outra garrafa de vinho. Me despeço de todos e vou para a redação do jornal impressionado com aquele Rei Zulu, Aquele Príncipe Etíope travestido de cidadão carioca apaixonado pelo Fluminense Futebol Clube. A dor da perda de um jogo maravilhoso, estudado, com duas equipes que sabem jogar e trabalhar a bola, cujo resultado mais justo seria o empate, por causa de um vacilo bobo da defesa ao final, tinha, para o negão, a potência destrutiva de um tufão. Todo o seu corpo se abalava em colapso como se tivesse sido vítima de uma traição amorosa, de uma infidelidade inesperada e repentina. Ele queria vingança, e como não era violento com os outros, bebia feito uma esponja e secava o seu algoz, o time da cruz de malta, com raiva infantil.

Sim, amigos, perdemos a chance mínima que tínhamos de ser tetracampeões brasileiros! E também não ganhamos nenhum clássico carioca esse ano. Claro, vocês me dirão: mas ainda tem a chance de vencer o Botafogo na última rodada! Mas, eu, serenamente, pergunto: para que essa exigência de ganhar clássicos se cada jogo, para o clube verde, branco e grená se transformou num clássico grandiloqüente? Nos últimos anos, qualquer adversário para o Fluminense é tratado como um rival imemorial. Daí as partidas transbordantes de emoções e entregas hercúleas. Daí os jogões que o time de Álvaro Chaves tem protagonizado, propiciando à sua doce e heróica torcida cenas de batalhas memoráveis, que só ampliam a grandeza mítica de história viva do futebol brasileiro, que o Fluminense carrega e se esmera, infinitamente, em enriquecer.

No dia seguinte, uma quinta-feira pela manhã, cruzo, após ter comprado o meu Jornal dos Sports, com o negão de “ventas raciais” parado em frente à lateral da banca da esquina, local onde os jornaleiros costumam pendurar as primeiras páginas dos vários diários da cidade. Está de terno e gravata, sapatos brilhantes, imberbe, com aparência de quem rejuvenesceu dez anos de ontem pra hoje. De mãos dadas com duas crianças, uma em cada lado, um lindo casal de meninos negros radiantes como o pai, que esperam que este termine a sua leitura matinal, se entretendo com o vai-e-vem das gentes e dos carros.

O negão, ao me ver, não me reconhece mas, sem cerimônia, como se fôssemos velhos amigos, e, nitidamente, movido por alguma intuição insondável e precisa, se dirige a mim, falando com voz solar e musical: um tricolor reconhece outro entre milhares, entre milhões. Sei que você torce para o clube das três cores que traduzem tradição. Pois bem, meu velho, vamos ganhar o Botafogo no domingo. Ficaremos em terceiro no Brasileirão deste ano. Mas esse jogo será a arrancada para ganharmos, no ano que vem, o Carioca e a Libertadores. Pode me cobrar. Está inscrito no meu corpo, posso sentir na pele a grafia dessas verdades. Acabo de viver uma iluminação zen! Os deuses do futebol me escolheram para ser o porta-voz de seus desígnios caprichosos...

Depois de emitir tais palavras assombrosas, colocou as crianças no colo, deu um beijo na bochecha de cada uma delas, abriu um sorriso cristalino, e se perdeu em meio à multidão do Centro da cidade.