terça-feira, 13 de novembro de 2012

Um time de deuses


Amigos, somos tetracampeões brasileiros! Um título muito mais do que merecido! Diria, sem proselitismo, um título que já nos esperava desde que (re) nasceu, em 2009, o espírito do Time de Guerreiros no Fluminense! Denominação que veio à tona depois de conseguirmos nos salvar de um rebaixamento eminente, que os matemáticos diziam que teria 98% de chances de acontecer. Façanha triunfal, que levou o Tricolor mais famoso do planeta a reencontrar a potência originária de sua alma. E a um time de futebol pode faltar tudo, menos alma! A partir de agora, é necessário que seja reescrita a história tricolor na contemporaneidade: o Fluminense a.G (antes do Time de Guerreiros) e d.G (depois do Time de Guerreiros). Exagero? Sim, mas o que seria de nós, pobres mortais, se não exagerássemos, movidos pela admiração e pelo espanto, diante da beleza de forças cósmicas como, por exemplo, a da campanha do Fluminense de 2012?

Os parvos e sonsos haverão de rosnar: “E o título da Copa do Brasil de 2007, e o vice da Libertadores de 2008?”. Aqueles momentos foram ensaios ritualísticos, danças e libações iniciais para o retorno do Espírito de Guerreiros, que andava combalido, desde finais dos anos 90, após nossos sucessivos rebaixamentos. Agora estamos vivenciando o reencontro saudável e glorioso do corpo e da alma, da tradição e da modernidade, da história e da mística do Fluminense Football Club, o único e autêntico Time de Guerreiros! Por isso, prevejo, sem medo do ridículo e do absurdo, já que ridículo e absurdo são dimensões legítimas do futebol: o século XXI será o século de consagração definitiva, nacional e internacional, do imenso Tricolor! Pois, é mais do que sabido, que o maior campeão carioca do Século XX foi o Flu, numa época em que ganhar campeonatos cariocas ou paulistas para os clubes brasileiros era tão, ou mais, importante do que vencer títulos de qualquer outra natureza.

Mas vamos falar da campanha do Fluminense neste brasileirão de 2012! Que campanha, amigos, que campanha: melhor ataque, melhor defesa, maior número de vitórias, menor número de derrotas, artilheiro da competição, e, acima de tudo, o título de time mais sóbrio, mais elegante, mais equilibrado! Senão, vejamos. A maioria de nossos escores foram por um gol de diferença, as assim chamadas vitórias magras. Houve raras e escassas aberrações como um adiposo 4 a 0 aqui, outro ali. Isso significa dizer que jamais humilhamos nossos adversários, sempre mantivemos os pés no chão, franciscanos, com as sandálias da humildade devidamente calçadas. Um time sem imensas euforias e sem graves depressões, sem estardalhaço e sem indiferença, mantendo um controle e um cuidado, com o outro e consigo mesmo, invejáveis, diríamos, ecumênicos. A máscara jamais foi usada, ficou em algum canto abandonado, enterrada como um sapo de boca costurada, fora, distante anos-luz do reino pós-aristocrático das Laranjeiras.

Por isso, muitos, por não entenderem as propostas éticas e estéticas da esquadra tricolor, cometeram barbarismos impagáveis. Falaram em volta da mística do “Timinho”; em ajuda dos juízes; em injustiça de placares; em futebol feio e sem graça, o que são, no mínimo, comentários destituídos de sensibilidade e sutileza. Amigos, a beleza da conquista do campeonato pelo time de Álvaro Chaves foi fina e lapidar, respeitosa, modernamente clássica, mais de Racine do que Shakespeare, mais de Cabral do que Drummond, mais de Chico do que Caetano. Se a estética dos títulos é sempre monumental, um mural de Diego Rivera ou Di Cavalcanti, o que o Flu (re) introduziu no futebol brasileiro, neste ano da graça de 2012, foi o equivalente do detalhe bossa-nova na melodia do samba: economia e precisão sem perder o suingue e a malandragem, pois um time que tem craques da envergadura de Deco, Fred, Wellington Nem, Cavalieri, Thiago Neves, Gum, Jean, não pode jamais jogar um futebol feio ou sem graça.

E mais, o Fluminense foi um time muito seguro de si. Não se desesperava, sabia de suas forças e da hora certa de usar cada uma delas. Conduzia as partidas como se fosse o maestro dos jogos e não um dos naipes da orquestra em contraponto com o adversário timbrístico. Ganhou, com isso, uma visão mais simultânea, divina, de cima, das partidas, e menos sucessiva, ao sabor dos lances e do acaso. O Fluminense campeão brasileiro de 2012 foi um time de deuses, não só um time de heróis guerreiros. Daí a confusão que alguns fizeram, chamando nossa equipe de fria e cerebral. Nada disso, estamos falando de uma esquadra inteligente, certeira, que buscou os resultados na hora em que precisou, medindo esforços, com jogadores experientes e lúcidos no comando das ações dos principais setores da equipe. E, somente por três vezes, durante toda uma competição de 38 jogos, não conquistou seus objetivos.

Bem, mas vamos à festa do título! Sim, amigos, a torcida tricolor se portou com exemplar abnegação, em nenhum momento cantou vitória antes do tempo, embora um pássaro de hinos infinitos insistisse em voar, delirante, de sua garganta. E no domingo fatal, em que seria sacralizado o que se anunciava há dez mil anos, a nossa legião, enfim, se permitiu arrancar a sandália da humildade e colorir a cidade com sua magia, plasticidade e vibração habituais. Já pela manhã, em cada canto, em cada bar e esquina se via um tricolor, camisa vestida, altivo e luzente, lendo seu jornal, tomando seu carioquinha, ajeitando suas bandeiras nas janelas. O título estava no ar, os poros transpiravam, os olhos anteviam, mas a doce e tenaz torcida tricolor não perdia o foco da partida decisiva.

O jogo estava cercado de expectativas opostas: o grande Palmeiras, detentor de 10 títulos nacionais, estando à beira da ida para a segunda divisão - após um ano em que venceu a Copa do Brasil, se garantindo, assim, na Libertadores do ano que vem –, certamente faria de tudo para não passar mais um vexame, como o ocorrido na queda de 2002. O Fluminense, para ser campeão com 3 rodadas de antecedência, teria que vencer o alviverde e torcer para uma derrota ou empate do Atlético Mineiro diante do Vasco. E os deuses do futebol foram generosos. A combinação de resultados aconteceu e, em Presidente Pudente, longe de sua massa carioca, o Flu venceu o Palmeiras por 3 a 2, e Vasco e Atlético empataram em 1 a 1.

Festa pelas ruas! Festa nos lares! Festa pelos restaurantes, praias e bares da cidade. Festa verde, branca e grená pelo Brasil e mundo afora! Os mortos também vieram, felizes, translúcidos, comemorar com os vivos! Encontrei a Viúva Botafoguense, com o seu marido falecido, o Tricolor de Lábios Roxos, abrindo sua quinta Chandon, no Lamas, entre beijos e baforadas na cigarrilha prolongada pela piteira. Esbarrei com a Loura Indignada na Praça São Salvador, às turras com o infiel Latin Lover, pego no flagra comemorando com a Amante Flamenguista em meio a uma caminhada da vitória. Cruzei com a Bailarina Vascaína, dançando, aos beijos, com o seu novo namorado tricolor no campo do Estádio das Laranjeiras. Acenei para o Negão de Ventas Raciais, agarrando um filho em cada braço, na Tribuna de Honra do Flu, tecendo, em êxtase tribal, loas ao nosso épico tetracampeonato. Nesse momento, meu celular tocou, fui para um canto menos barulhento do mítico gramado para ouvir melhor e a surpresa foi estarrecedora: o Velho do Restelo, cético e amargurado, sempre negando e condenando as grandes aventuras transatlânticas, se encontrava, numa churrascaria, com o Profeta Tricolor. Juntos, liam bolas de cristais, jogavam cartas de Tarô, a fim de vaticinarem as futuras conquistas do Time mais Amado do Brasil. Estavam me ligando para contar, num português quase ininteligível, o resultado de suas previsões, que geraram pérolas místicas e concretas como esta: “O Fluminense, em 2013, vencerá o carioca, ganhará a Libertadores e será campeão mundial”.

O único ponto triste, doloroso mesmo, se deu quando fui pegar um táxi para voltar para casa - o dia já clareando, faixa de campeão no peito – e me deparei com o Atleticano Melancólico sentado no meio fio, mão no queixo à Pensador de Rodin, numa abulia inconsolável. Tinha os olhos fixos num ponto infinito qualquer, o rosto pálido, olheiras profundas, soltando, minuto a minuto, suspiros longuíssimos. O querido torcedor do Galo das Alterosas havia retornado, mais uma vez, para o estado de coita amorosa, a dor do amor não correspondido que, volta e meia, o enfeitiçava cruelmente. Quando me viu, saiu por segundos de seu estado lastimável e abriu um sorriso amarelo, honesto, dorido: “Sr. Nelson! Há quanto tempo! Que saudades! O que o Sr. está fazendo aqui a essa hora da madrugada? Estreou peça nova? Recebeu as vaias de que o Sr. tanto se vangloria em conquistá-las?” Ainda compadecido, respondi, cuidadoso para não fazê-lo sofrer ainda mais, só que agora não por uma mulher, mas pela paixão clubística: “Não, meu amigo, estou voltando das Laranjeiras, da festa do título. O Fluminense é o campeão brasileiro de 2012!”

Após ouvir as minhas palavras o Atleticano Melancólico estancou. Olhou para o nada, entrando num estado de absoluto torpor, a boca entreaberta, os braços jogados ao lado do tórax, e voltou a sentar. Nesse instante, aparece, sorridente, com um embrulho em uma das mãos e celular na outra, o Filósofo Botocudo. Usava a indefectível calça jeans, descalço, o corpo pintado de jenipapo e urucum, portando um cocar e outros adornos de penas e contas. Ostentava a mesma faixa de campeão que eu, orgulhoso, peito ao vento. Fez uma festa quando me viu, dançando e cantando músicas de cura e da mais pura alegria, pois era um grande xamã de sua tribo do tronco lingüístico Macro-Jê. Quando cessou, se dirigiu a mim, com olhar sereno e voz enfática e pausada: “Sr. Nelson, só a filosofia salva o homem da melancolia profunda! Só a felicidade que o Fluminense propicia pode salvar a alma de nosso amigo atleticano! Fui numa loja 24 horas comprar um Black Label para tentar salvá-lo! Vamos comemorar o título e arrancar o espinho que fere tão duramente a alma do nosso irmão! Vamos para a beira do mar molhar os pés e matar essa garrafa de cauim dourado!”

O Atleticano Melancólico, então, se levantou outra vez, como que galvanizado para uma festa, um zumbi redivivo pelas palavras sábias do Filósofo Botocudo, pôs um braço no meu ombro, o outro no do xamã, proferindo, categórico, as seguintes palavras: “O dia está nascendo, o Fluminense é campeão, que se dane aquele amor desgraçado: vamos para a praia!” E fomos andando rumo ao mar, de Laranjeiras ao Leme, entre grandes goladas de uísque, cantos ameríndios, piadas inesperadas e pitadas de fumo, enquanto a beleza da aurora invadia e dominava os últimos restos de noite espalhados pela cidade.

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sábado, 7 de julho de 2012

Fla-Flu: a flor de obsessão

Amigos, hoje estamos comemorando 100 anos de Fla-Flu. Sim, no dia 7 de julho de 1912 houve a famosa dissidência no Fluminense, que acabou por fundar o futebol no clube de remo da Gávea. Na ocasião, nove jogadores titulares do time campeão tricolor de 1911 foram para o Flamengo e iniciaram, assim, a maior rivalidade futebolística do planeta. Maior não pela constância de intolerância de ódio, sentimento que sublinha e extrema as emulações imemoriais, mas por abarcar uma teia infindável de sensações múltiplas, interdependentes, espelhadas. Pois Flamengo e Fluminense provêm da mesma família, do mesmo sangue e genética, e, como patrimônios da cidade do Rio de Janeiro que são, ao entrarem em combate pelos campos e estádios do mundo, propiciam, sempre, espetáculos em que as sutilezas complexas das relações privadas, familiares, tornam-se públicas, cívicas, universais.

Os homens predestinados que, numa pensão no Catete, vivendo um simples conflito de interesses cotidianos, deram início ao Big Bang do Fla-Flu, jamais poderiam intuir que, ali, com gestos e pensamentos comuns, começavam a movimentar pulsões insondáveis, forças cósmicas, multidões apaixonadas. Eram indivíduos de sua época, tomando as decisões que seus juízos tinham pelas mais acertadas; contudo, inconscientes de que serviam a leis superiores, divinas, implacáveis. Por isso, repito e repetirei mil vezes, até que a limpidez cristalina da verdade se aposse de minha sentença: o Fla-Flu nasceu quarenta minutos antes do nada! Não tem começo ou fim! É puro processo, pura energia vital em que as camisas, os mantos sagrados dos dois times, vestidos pelos heróis e semideuses menos óbvios, se engalfinham, possuídos pelo vastíssimo prisma de sentimentos entre o amor e o ódio, através dos tempos.

Senão, vejamos. Assim que acaba um Fla-Flu, se espraia pela cidade a violenta nostalgia do próximo. E mais, cada jogo entre os rivais recupera o gesto original do primeiro, quando, é sabido, os titulares do Fluminense, com a camisa do Flamengo, perderam para os reservas, com a camisa do Flu. Ou seja, o improvável, o inesperado, o paradoxal toma conta de toda a situação, dentro e fora do embate: o time mais fraco pode vencer o mais forte; jogadores medíocres podem atuar como craques iluminados; heróis viram a casaca para o outro lado e conquistam títulos memoráveis; torcedores dizem ser Fla-Flu, criando quase uma entidade mítica, tigre de duas cabeças. Com isso, o Fla-Flu se dá, principalmente, no âmbito do incomum, das peripécias surpreendentes, na dimensão do absurdo. Não é um mero fato que ocorre no espaço-tempo, e, sim, um epifenômeno que se deflagra numa das onze dimensões que os físicos especulam que haja no cosmo e que os místicos, muito mais lúcidos, sempre souberam que há.

Pois sim. Mas hoje, também, não posso deixar de falar sobre um e-mail que, logo cedo, veio atracar em minha caixa postal. A Amante Flamenguista do tricolor Latin Lover, irmã mais nova do saudoso rubro-negro Paralelepípedo de Albuquerque, me enviou uma colagem com trechos de textos meus em que faço menção ao mítico clássico entre Flamengo e Fluminense. A mensagem vinha com a seguinte dedicatória: “Para o Sr. Nelson, o maior tricolor de todos os tempos, como singela admiração de uma rubro-negra sua fã, tão apaixonada, ou mais, quanto o Sr. é pelo seu Flu, mas só que pelo meu Flamengo.” Quase fui às lágrimas pela graça do agrado da moça. Eis o texto-montagem que ela me enviou:

“Todos sabem da rivalidade familiar, feroz, que existe entre Flamengo e Fluminense. E, também, que são torcidas que agregam toda a gente, são torcidas híbridas, multiétnicas, indo do pé-rapado mais absoluto ao empedernido tubarão federal. Contudo, jamais se cantou a doçura da torcida flamenguista. Sempre se louvou a raça, a empáfia, o fanatismo, a intransigência, a gana dos urubus.

Mas eis que surge uma Doce Rubro-Negra! Sim, amigos, uma flamenguista com ares tricolores!

Há um parentesco óbvio entre o Fluminense e o Flamengo. E como este se gerou no ressentimento, eu diria que os dois são os irmãos Karamazov do futebol brasileiro.

Como se estivéssemos presenciando uma cena de disputa familiar, entalada na garganta dos membros por gerações, que, de repente, deixassem cair os entraves do decoro, e se abrissem para o confronto desnudo e franco! Uma mágoa e um amor desmedidos sendo solucionados no embate direto, corpóreo, entre oponentes umbilicalmente unidos.

... o Fluminense é um time cíclico, regido pela força selvagem do tempo das estações, não é um time de futebol preso às leis do tempo linear cronológico; daí, toda a dificuldade e encantamento de suas vitórias, de seus títulos memoráveis! Torcer pelo Tricolor das Laranjeiras é torcer por uma potência da natureza, imprevisível e fascinante, sempre abalando, com passos de maremoto, os limites da medida humana.

Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a camisa é tudo. Já tem acontecido, várias vezes, o seguinte: - quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas tremem, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.”

O Fla-Flu é minha flor de obsessão. Sempre foi e sempre será o maior clássico de futebol do mundo, conhecido e desconhecido. Por isso que, no domingo, estarão presentes no Engenhão tricolores e rubro-negros vivos e mortos. Do lado do Flu, me confirmaram presença o Tricolor de Lábios Roxos, o Latin Lover, o Velho do Restelo, A loura Indignada, o Negão de “ventas raciais” e o Filósofo Botocudo; do lado do Fla, a Doce Rubro-Negra, a Amante Flamenguista, o Paralelepípedo de Albuquerque e meu irmão Mário Filho. Até a Bailarina Vascaína e a Viúva Botafoguense sentenciaram que não perderão o espetáculo por nada! Será um jogaço! Quem viver, verá! “Daqui a duzentos anos, a cidade dirá, mordida de nostalgia: - Aquele Fla-Flu!”

Crônica feita originalmente para o site: http://nazagaenasartes.wordpress.com/

sexta-feira, 18 de maio de 2012

A cara de pau do juiz colombiano



Amigos, o Fluminense é imenso. Sim, é o óbvio, todos nós sabemos que o Tricolor das Laranjeiras é capaz de feitos inigualáveis e que já nasceu com a vocação da eternidade. Somente as toupeiras desavisadas, cavando seus túneis subterrâneos, poderiam deparar-se com verdades luminosas como essas e fazer pouco caso. E foi o que aconteceu quando o Pó-de-arroz desceu aos infernos da terceira divisão, lambeu a língua de Satã, sendo obrigado a conviver com a execração impiedosa dos rivais, e retornou mais forte e radiante do que nunca. Isso porque o Flu é colossal, incontornável, cósmico e renasce cada vez mais exuberante, sempre que é desafiado a exibir a sua andadura de gigante, de história viva do futebol brasileiro e mundial pelos campos do planeta.

Acabo de ler a notícia de que o Fluminense é o time brasileiro que mais venceu os argentinos nas edições da Copa Libertadores. Vocês têm a noção do que isso significa? Mal começamos a levar a sério a maior competição americana e já estamos fazendo história outra vez. Não duvidem nunca da imensidão do time pó-de-arroz, pois ele sempre responde com novas e surpreendentes façanhas, capaz de encher os olhos dos heróis épicos das epopéias mais sublimes!

Enquanto eu escrevia essas frases na redação do jornal, entretido no ato de selecionar palavras precisas para expressar a magnanimidade do Flu, sinto uma mão, grande e calejada, pousar em meu ombro. Quando me volto para ver quem estava ali, o cigarro no canto da boca, fico estarrecido ao me deparar com a figura mítica e hierática do Velho do Restelo. Sim, meus amigos, o severo, o implacável, aquele que sempre condenou a ousadia do povo português de se lançar na aventura marítima para as Índias, o personagem torto de Os Lusíadas, de Camões, surge ante meus olhos. Barba de patriarca bíblico, túnica inconsútil, cajado nas mãos, de longa cabeleira branca caída sobre as costas, o Sr. Antiaventura solta essas palavras proféticas, com sua voz de timbre centenário: “O Fluminense perderá hoje para o Boca Juniors na Bomboneira! Será, no entanto, uma derrota heróica, contra tudo e contra todos! Mas não se desespere, o Tricolor mais famoso do planeta se classificará ainda assim. Venceremos no jogo de volta no Estádio João Havelange. Nada para o Pó-de-arroz é sem drama, sem suor, sem lágrimas. O Flu é um time operístico. Fará uma partida memorável na quarta que vem!”

Na hora em que abro a boca para responder, o Velho do Restelo já se encontra na porta de saída, serelepe, ágil como um garoto, no alto de seus quase quinhentos anos. De longe, antes de sumir, fantasmático, ainda vaticina, em tom de baixo profundo: “Cuidado com o juiz hoje à noite, Sr. Nelson, cuidado com o juiz colombiano!” Só consegui levantar meu queixo, caído de espanto com tal aparição, quando a cinza do cigarro que estava no canto de minha boca se desfez sobre o meu colo...

O Velho do Restelo já me visitara após a derrota para o América Mineiro no campeonato brasileiro do ano passado, na saída da torcida das arquibancadas, desolada após o inesperado placar de 2 a 1 que, praticamente, nos alijou da disputa do Brasileirão. Suas profecias semearam uma nódoa negra nos rincões mais silenciosos de minha alma, um mau presságio qualquer para o jogão desta noite em Buenos Aires. Contudo, como otimista obsessivo que sou, fiel representante da seita de tricolores apaixonados, sempre à espera de mais uma peripécia mágica na trajetória de feitos gloriosos do Flu, fui pra casa assistir ao jogo na tevê munido de meu indefectível arsenal de torcedor consciente do misticismo inato do time da Pinheiro Machado: cerveja, camisa tricolor tatuada na pele e muita fé!

Assim que o jogo começou, vi o Time de Álvaro Chaves dominar e domar os xeneizes, sem nem tomar conhecimento do pandemônio instaurado na Bomboneira pelos ensandecidos zumbis e vampiros da torcida bostera. Mesmo sem 5 titulares, o Flu passeava pelo temido campo do adversário. Contudo, cometia o erro supremo nas partidas decisivas: perdia gols... e um deles feito, como o que Jean perdeu cara a cara com o goleiro, jogando a bola por cima do travessão, tendo, além do mais, a opção de poder lançar Rafael Moura, livre na pequena área, a sua esquerda. A cada gol perdido eu ouvia um som estranho vindo de minha janela, um grasnar doloroso e profundo. Como o jogo não parava, e meus olhos estavam vidrados no epifenômeno, na aparição divina que é o Fluminense em campo, não dei atenção àquela sonoridade estranha, a meio passo entre a melodia e o ruído.

O Boca começou a mudar a situação a partir de uma jogada infantil de Carlinhos, nosso grande lateral esquerdo que, nas horas decisivas, faz os lançamentos abençoados para os artilheiros marcarem gols salvadores. Mas hoje a missão dada pelos deuses do futebol a um dos principais canhotos de nosso time foi diametralmente oposta: realizar o que o juiz, o time e a torcida argentina esperavam: cometer falhas tolas, de quem não estava ligado na complexidade de fatores psicofísicos que estão em jogo no momento em que batalhas de ódios imemoriais estão acontecendo... o direito a erros primários estava cedido ao time do Boca, ao qual o juiz colombiano era extremamente concessivo, diria até paternal, mas, para o Fluminense sobrava apenas o jugo do carrasco, o implacável gesto da lei fria e intolerante!

E foi sob essa ótica que Carlinhos foi expulso aos 34 minutos do primeiro tempo, o que transformou um jogo que, a qualquer momento o Flu poderia ganhar, num salve-se quem puder homérico de ataque contra defesa. A raça e a dedicação não abandonaram jamais as hostes tricolores, que lutavam bravamente a cada jogada, a cada respiração. Até que veio o intervalo do primeiro tempo e o alívio momentâneo para a nação verde, branca e grená. Nesse instante, já pela quarta ou quinta vez, ouço novamente o grasnar fundo, metafísico em minha janela. Resolvo decifrar o mistério. Quando abro a persiana, me deparo com - nada mais, nada menos - o Corvo de Edgar Allan Poe, pousado num “alvo busto de Atena”, e emitindo, agora de modo claro para mim, o seu arquifamoso bordão: “Nunca Mais”!

Nem pensei duas vezes: num ímpeto guerreiro, dei um safanão que levou corvo, busto de Atena e bordão agourento para longe de minha janela. O busto espatifou-se no chão da rua, o corvo saiu voando para não sei onde e o bordão não se ouve mais, nunca mais. Ouço sim, o telefone tocando. Vou atender e é a Loura Indignada do outro lado da linha. A deusa anglo-saxã, certamente mantendo num único ritmo, semelhante e constante, o movimento da mão direita e do pé direito, num gesto enfático de reprimenda, falou: “Sr. Nelson, o que está acontecendo! Trata-se de uma tragédia anunciada! Todos sabiam que o colombiano era um safado, um juiz caseiro, picareta, mercenário e que ia roubar pro Boca! A Conmebol está armando das suas outra vez para que os times brasileiros não se encontrem nas finais. Isso é vergonhoso, Sr. Nelson! E ninguém faz nada e ninguém fala nada? O Fluminense deveria não voltar para o segundo tempo e, depois, pedir para a CBF abandonar de vez a competição! O cara de pau do juiz colombiano, além de expulsar severamente o Carlinhos, ainda não deu o pênalti no finalzinho, numa cabeçada do nosso zagueirão Anderson, cujo destino certo da pelota era o fundo das redes, tirada com o braço pelo xeneize Erbes de modo escandaloso... Até os jornais argentinos, bairristas como eles só, vão dizer amanhã, pode me cobrar, que houve a penalidade máxima, Sr. Nelson!”

Ao escutar seu discurso enfezado, o aparelho telefônico em minhas mãos parecia uma concha saída de mares profundos, emitindo sons de forças matriarcais indomáveis... Entrei em estado de empatia absoluta com a voz de solo de guitarra telúrica da deusa viking, pois a indignação dos justos é comovente, vital, revigorante! Retruquei, então, tentando ser equilibrado e contido: “Podemos até não empatar ou vencer esse jogo, o que é o mais provável, mas o sentimento suscitado pelo arbítrio dessa injustiça se apossará de todos os tricolores mortos ou vivos! O jogo da semana que vem não será apenas do time do Fluminense contra o Boca Juniors, mas, sim, deste último contra toda uma nação de delirantes apaixonados, em êxtase verde, branco e grená, com sede de vitória nunca antes sentida na história das batalhas imemoriais deste planeta!”

A Loura, então, num gesto frívolo e apressado, me respondeu: “Vou desligar, Sr. Nelson, o segundo tempo vai começar. Saudações!”. Como previsto, o Boca pressionou o Flu até conseguir seu gol na segunda etapa. Mas nosso samurai cubo-futurista, o imenso Cavalieri, mantendo viva a tradição da leiteria de Castilho, fez defesas maiúsculas durante toda a partida, evitando uma possível goleada. Apesar da criação de algumas chances pelo nosso ataque desfigurado, não conseguimos o empate. Contudo, o germe da revanche, da força que impulsiona os indignados já tinha sido lançado, já começava a crescer no coração e na mente de cada membro da nação pó-de-arroz.

Sabemos que o time bostero é useiro e vezeiro em conquistar a classificação na casa dos adversários, é um time copeiro, principalmente quando joga a Libertadores. O que poderá acontecer, não resta dúvidas. No entanto, dessa vez, terão que suar em dobro a camisa de cores tiradas da bandeira da Suécia, pois vão ter que enfrentar não apenas um time de futebol sedento por revanche, com sangue nos olhos, mas a indignação febril de 10 milhões de tricolores clamando por justiça!

terça-feira, 8 de maio de 2012

O sonho da Viúva Botafoguense

Amigos, acordo na manhã do primeiro jogo da grande decisão do estadual carioca de 2012 com o telefone histérico, berrando pela casa. Ainda com fiapos de sonhos nos olhos, busco o aparelho às apalpadelas, mais para fazê-lo calar do que para atendê-lo. Na hora agá, sou tomado por um calafrio de responsabilidade e resolvo colocar o fone no ouvido. Qual não foi minha surpresa ao ouvir, do outro lado da linha, a voz de meu irmão mais velho, vibrando cada uma de suas cordas vocais para emitir palavras do mais puro entusiasmo tricolor:

- Se lembra, irmão? Há 41 anos atrás, a final com o Botafogo de 1971? Fiz a promessa que acenderia o dobro de velas do número da camisa do jogador do Flu que fizesse o gol da vitória... e foi o Lula, o ponta esquerda, o camisa 11... e você entrou na sala e me viu ajoelhado no chão, rezando, entre 22 velas... a partir daí surgiu a sua paixão pelo Fluminense... Lembra?

Em respeito à possessão verde, branca e grená que dominava a voz de meu irmão, respondi que sim, claro, lembrava sim, não com todos esses detalhes, mas lembrava muito bem da situação. Então, sem me deixar esboçar nada além do que esse sim lacônico, continuou sua fala encantatória, com a energia dos apaixonados translúcidos:

- Hoje o imenso Fluminense, o imortal, o eterno, a própria história viva do futebol brasileiro, entrará em campo com o espírito daquele jogo de 1971 reencarnado nos jogadores! Daremos um passeio, uma lavada no Botafogo!

E desligou o telefone sem nem ao menos escutar a minha educada retribuição, ainda um pouco sonolenta, à sua despedida. Estava dominado, dos pés à cabeça, pela alma da vitória, balbuciava vitória, respirava vitória, até os pontuais silêncios da sua fala elástica eram prenúncios de uma larga vitória...

Ainda abalado pelo inesperado augúrio de arúspice romano matinal de meu irmão, sem saber ao certo se acabara de vivenciar uma artimanha do sono ou da vigília, mudo de roupa e vou para o bar da esquina tomar o meu carioquinha de todas as manhãs.

Lendo o Jornal dos Sports, em pé diante do balcão, sinto o cheiro de uma flor rara ao meu redor... pensei, ainda cabisbaixo, na flor azul de Novalis, na brancura da flor de lótus de Buda, no perfume da flor de laranjeira...Mas quando alço meus olhos do jornal me deparo com todo o glamour e poesia da Viúva Botafoguense. Sim, a melindrosa dos loucos anos 20, sempre de boquinha vermelha à Glória Swanson, vestido tubular de seda, trazia, em uma das mãos, uma piteira com uma cigarrilha acesa na ponta, na outra, uma taça de champagne francesa ainda borbulhante.

Quando a darling me viu soltou gritinhos de felicidade: “Ulalá! Era o Sr. mesmo que eu estava procurando, Sr. Nelson! Sei que o seu território é por essas bandas! Por isso vim passear por aqui! Que prazer, meu querido”. E me deu dois beijinhos que não abalaram em nada o contorno de coraçãozinho de batom de seus lábios. Depois, mudou de tom: “Mas hoje somos inimigos! Estou aqui para propor uma aposta. Topas?” Respondi que sim, como não, ainda mais vinda de uma amiga tão especial. Ela, então, continuou: “O meu amado falecido, o Tricolor de Lábios Roxos, na noite passada me apareceu em sonho. Dizia que era melhor eu não ir ao Engenhão, pois eu sairia profundamente decepcionada de lá”.

Lembrei imediatamente, neste instante, das palavras possessas ao telefone de meu irmão. E tive uma antevisão momentânea: vi, em silêncio, a mais doce torcida do mundo vibrando, delirante, após um gol do time de Álvaro Chaves no Estádio João Havelange. Calei. A Viúva, aproveitando a deixa de meu silêncio, insistiu: “Está com medo Sr. Nelson? Toda vez que o falecido aparece em sonho, o Botafogo ganha! Assim, aposto uma noitada no Lamas, regada a Chandon e ópio, que o Glorioso sairá na frente na decisão!”

Continuei em silêncio. Por fim, olhei para a Darling de cabelo a la garçonne e disse: “Fechado!” A discípula de Coco Chanel era toda felicidade, se despediu com novos beijinhos e saiu dançando um charleston imaginário, balançando o colar de pérolas no pescoço e o headband de flores e pedras preciosas na cabeça.

Voltando pra casa, calmamente, pensava: o Fluminense hoje fará um partidaço! Um tricolor sabe, possui o dom da premonição da vitória! Hoje, ao cair da tarde, presenciaremos uma batalha memorável!

Bem, amigos, até o torcedor mais indiferente ao esporte bretão, aquele que diz que torce por um time apenas nas rodas sociais, para não se sentir constrangido ou excluído, sabia que o Botafogo estava invicto há 22 partidas este ano. O esquadrão alvinegro, além do mais, acabara de realizar, diante do Vasco, uma exibição de gala na final da Taça Rio, vencendo os cruzmaltinos por um convincente 3 a 1. Os sites de relacionamentos chegaram a dar mais de 80% de possibilidade de vitória ao Glorioso na final contra o Flu. Afora o fato de que a equipe pó-de-arroz não vencia a do Botafogo desde a inauguração do Engenhão...

Mas, como eu dizia, mesmo o torcedor alienado, entediado, indiferente ao futebol recebia as vibrações do revitalizadíssimo Clássico Vovô em suas narinas, em seus ouvidos, olhos e não podia, melhor, não queria, ficar à margem de uma manifestação tão decisiva quanto a final do carioca de 2012. A cidade respirava esse jogo pelos poros, bueiros, pipas, babas dos cães. Até o sacripanta mais empedernido, o mendigo mais esfarrapado, o religioso mais carola, se angustiava em dúvidas íntimas: “Hoje dará Botafogo ou Fluminense?”

E foi por essas e por outras que, ao subir as rampas de acesso às arquibancadas do João Havelange, me deparo com um morto, mais vivo do que nunca: o Tricolor de Lábios Roxos, o falecido adorado da Viúva Botafoguense! Estava sentado numa das muretas, apreciando a felicidade febril da massa pó-de-arroz se dirigindo para a parte que lhe cabia no Estádio. Quando me viu, me deu um abraço caloroso, apesar das suas mãos frias de habitante do além: “Sr. Nelson! É um prazer indescritível voltar a vê-lo! Tricolores de sua estirpe não existem mais! As cadeias genéticas atuais não comportam mais tamanha paixão!” Respondi-lhe, constrangido, que o prazer era meu e narrei-lhe, sem meias palavras, o sonho que sua amada me contara. Respondeu-me: “É Sr. Nelson, vou aprontar uma para cada lado hoje; entretanto, não poderei intervir mais em nada na partida. Deixarei tal tarefa para os deuses do futebol.” E sumiu, num átimo, ante meus olhos, sem deixar quaisquer vestígios...

Estava me lembrando desse encontro no intervalo do jogo, após os dois gols que definiram o placar até o final da primeira etapa. Certamente foi o Tricolor de Lábios Roxos, para agradar a sua amada, que fez o Carlinhos furar a bola chutada por Renato, deixando-a passar entre as suas pernas, para depois morrer no canto direto de Cavalieri, sem culpa nenhuma no lance, por estar com o campo de visão obstruído por uma massa de jogadores, não vendo a trajetória da bola, no primeiro e único gol do Bota. Assim como foi o morto também que mudou a linha da redonda, após a cabeçada de Tiago Neves para trás, enganando Sóbis e colocando-a, com açúcar e com afeto, nos pés de Fred. O artilheiro do engenho e arte, sem meio-termo, infalível nas horas decisivas, executou uma diamantina bicicleta, quase um golpe marcial em sua precisão e clareza. Tanto que Jefferson, o arqueiro botafoguense, ficou estático, embasbacado, sem ação, diante de força certeira do chute, sem nem ver direito como a bola fulminante entrou no fundo das redes a sua direita.

Pois sim, claramente, os dois primeiros gols da partida foram as duas diabruras que o Tricolor de Lábios Roxos dissera que iria aprontar no jogo de hoje. Mas, independentemente da intervenção sobrenatural, presente até mesmo na mais rastaquera das peladas, o Flu, após levar o primeiro gol, começou a tomar conta do jogo... e não largou mais a mão do leme da nau até o final do embate. Contudo, um nome foi o responsável por esse controle, pela orquestração, pela movimentação geral dos combatentes, ditando o ritmo de batuta na mão. Sim, pois tínhamos em campo um tipo de craque que não existe mais no futebol pós-moderno: o regisseur de todos os instrumentos/ jogadores em campo, inclusive dos que emitem sons adversários em contraponto: Deco, o gênio, o mago, o maestro, o xamã supremo da tribo tricolor.

Deco é uma síntese entre Didi e Ademir da Guia, entre Gerson e Carlos Alberto Pintinho. Um cracaço que molda as jogadas como um escultor, trabalhando cada lance com a calma do artesão. Além disso, tem o tempo da ampulheta nos pés, conduz com categoria incomum a andadura, a música das jogadas. Não tem pressa. Mas precisão. Não se afoba, não dá chutão. Pensa. A bola grudada nos seus pés. Pensa e age no momento exato: um leão atacando, um samurai desferindo golpes impiedosos, quando é o momento da investida fatal. Como fazia falta ao atual esporte bretão um jogador desse naipe, com domínio poético-musical geral da peleja! Ainda bem que Deco se recuperou das seguidas lesões e continua desfilando categoria, exuberante, pelos palcos/ gramados brasileiros!

E foi de uma dessas movimentações melódicas dos passes de Deco que saiu o gol de desempate. O Mago colocou uma bola deslizante, seca e geométrica, entre dois botafoguenses - que a viram passar sem entender quase nada -, para Sóbis ficar cara a cara com Jefferson. O atacante ainda teve a pachorra de passar a redonda para a perna esquerda, antes de colocá-la no ângulo direito do goalkeeper, de modo indefensável. O terceiro gol saiu de um lançamento do aprendiz de feitiço Tiago Neves, que, seguindo os passos do mestre Deco, fez um lançamento, da meia-direita do ataque tricolor, em diagonal para Sóbis - ele outra vez - driblar o goleiro, quase perder o ângulo da meta, mas, com faro de gol, colocar a bola nas redes, deixando o zagueiro desolado, caído no chão. O quarto, que fechou a tampa do caixão botafoguense, e pode ter selado o destino da taça deste ano na direção da sala de troféus tricolores, saiu de uma linha de passes magistral: Deco enfia uma bola reta, frontal para Sóbis que, de letra, a desvia para Fred; este dá um passe de bandeja, doce, doce, para o garoto Marco Júnior, nova pérola de Xerém, colocá-la, direta, firme, no fundo das redes... uma pintura de linhas cubo-futuristas!

Ao final do jogo, eufórico, transformando todos os torcedores tricolores em companheiros tribais de priscas eras, encontro a Viúva Botafoguense de braços dados com o Tricolor de Lábios Roxos. Ambos estavam felizes, preparados para uma festa qualquer, onde, certamente, haveria muito charleston e muita Chandon. Estranhei a alegria da Viúva, mesmo após a derrota, mas resolvi me calar. Apenas abracei-os, comovido por vê-los juntos outra vez. A Melindrosa, então, soltou o verbo: “Sr. Nelson, o jogo de hoje foi uma fatalidade, mas o Botafogo não está morto! Podemos muito bem reverter o resultado na próxima partida!” Claro, claro, respondi compreensivo. Ela continuou: “Estamos indo para o Lamas, vem com a gente? Não esqueci de nossa aposta! Hoje é tudo por minha conta!” E saiu andando serelepe, com seu passo de foxtrote, à procura de um táxi. O Tricolor de Lábios Roxos, já com outra garrafa de vinho na mão, chegou mais perto de mim e, em tom confessional, sussurrou: “Não posso ficar mais, tenho que ir! Cuida bem de minha amada adorada! E não fala nada para ela não, mas a Taça já é nossa!”

terça-feira, 10 de abril de 2012

As incontornáveis paixões



A Amante Flamenguista do Latin Lover e a Bailarina Vascaína, estudantes de artes cênicas da UNIRIO, chegaram mais de meia hora atrasadas à nossa entrevista. O fusca franciscano da primeira deixou elas na mão no meio do caminho, tiveram que se virar para chegar em minha casa a tempo. Quando abri a porta, me deparei com as duas de bochechas róseas e ar tempestuoso, dominadas pela ansiedade e pelos ventos. Depois das desculpas de praxe, sentaram-se na poltrona da sala, suspiraram fundo, abriram os seus laptops e um sorriso de repórter criminal. A Bailarina Vascaína, de chofre, perguntou:

- Sr. Nelson, por que o Fluminense? Como tudo isso começou?

Calmamente, respondi:

- Sou um pó-de-arroz nato, hereditário. Antes da primeira chupeta, da primeira palavra balbuciada, eu já era tricolor. Aliás, os elementos que compõem a minha cadeia genética, que remetem à minha origem mais remota, anunciam o futuro fã do time de Álvaro Chaves. Ser Fluminense não é uma condição, é uma natureza, um estado natural, anterior à civilização e à cultura. O mapa do céu, no momento em que nasci do ventre de minha mãe, já previa a minha alma tricolor, que me acompanha desde sempre, onde quer que eu vá, como um anjo da guarda vivo e fiel...

A Amante Flamenguista, inquieta e impaciente, arremete:

- Sr. Nelson isso é pura retórica, pura literatura...

Respondi que sim, mas que mal há nisso? Não é menos legítima ou saudável a minha resposta pelo fato de não passar de literatura. Há fatos, acontecimentos que só podem ser narrados de modo lendário, mítico, a mera informação pétrea e objetiva é incapaz de traduzir a violência sagrada e poética de determinadas paixões. A rubro-negra, irmã mais nova do saudoso Paralelepípedo de Albuquerque, insiste, mais incomodada ainda:

- Preciso de dados, Sr. Nelson, quem era tricolor na sua família, qual foi o primeiro jogo que o Sr. assistiu, o seu interesse pelo Flu surgiu por amor a um ídolo, à camisa, ao time, à torcida...

De modo brusco, e solidário com meu desinteresse em reduzir a dados o óbvio ululante, a Bailarina Vascaína interrompeu a colega...

- Que papo é esse, garota? Viemos aqui para ouvir um oráculo, um sacerdote, um fanático que torce e distorce pelo Fluminense! Que vê com o olho da imaginação e do prazer, levitando em êxtase e entusiasmo, como os grandes santos místicos, possuído por uma paixão absoluta...

Constrangido, tanto pela fala de uma com a de outra, mudo radicalmente de assunto e pergunto se elas aceitariam degustar um Romeu e Julieta com um copo d’água. Os olhos das duas, após minha proposta, vazam luz! Nesse instante, toca o telefone. É o Latin Lover, o tricolor canalha doce, que não consegue se decidir entre a Loura Indignada e a Amante Flamenguista...

Depois dos inevitáveis comentários calorosos sobre as últimas notícias do Flu, o Latin Lover quer saber se a rubro-negra já acabara a entrevista. Estava carente, queria encher de beijos a sua Amada. Respondi que sim, que só iríamos comer uma goiabada com queijo dos deuses e ela sairia. Ao ouvir isso, a moça arrancou o telefone de minha mão e gritou, efusiva e ardente, a boca quase engolindo o aparelho: “Estou voando para te encontrar, meu amor!”

E partiu, deixando a porta aberta, e eu e a Bailarina Vascaína, felizes, comendo nosso Romeu e Julieta, com um copo d’água na mão, sob o suave delírio de nossas incontornáveis paixões clubísticas...


Texto produzido para o blog: http://nazagaenasartes.wordpress.com/

sexta-feira, 9 de março de 2012

Bombonerazzo

Amigos, outro dia, conversando com o meu amigo Atleticano Melancólico, ouvi do mineiro, solidário não apenas no câncer, uma frase fulminante, vinda de um pensamento em forma de raio que cruzou, de modo inesperado, as brumas de melancolia constante que rondam suas idéias:

- Não acredito! O Sr. está me dizendo que vai parar sua vida para ver o Fluminense jogar contra o Nova Iguaçu, num sábado à noite, pela Taça Rio? O Flu já está na final do Carioca, esse jogo não vale nada! Além do mais, os Campeonatos Regionais estão falidos! Se não for jogo entre dois times grandes, não há mais graça nenhuma na competição!

Respondi, de bate - pronto, para o romântico das Alterosas, atento à alteração que minha paixão pelo tricolor sagrado causara em seu humor: “todo e qualquer jogo do Fluminense me interessa! Pode ser contra o poderoso Barcelona ou contra o pífio Íbis! O fato de o Tricolor das Laranjeiras surgir nos gramados já é um epifenômeno, uma aparição divina! O mundo silencia, bestificado, para apreciar a entrada em campo, sempre exuberante, do time da instituição centenária!”

O Atleticano Melancólico, então, esboçou um sorriso à Mona Lisa, breve e significativo, como se tivessem sido desvelados em sua mente segredos enigmáticos, após a audição de algumas poucas palavras essenciais. Olhou para o nada por alguns instantes e, num gesto perdido no vácuo, se despediu de mim, seguindo pelas ruas da cidade com seu passo lento, de quem carrega um peso imenso, insondável e indefinível, nas costas.

Eu me lembrei desse episódio enquanto dava meu passeio de final de tarde na Lagoa Rodrigues de Freitas; e, diante de outra aparição celeste tão poderosa como o Flu, silenciava em êxtase vendo o sol morrer atrás das montanhas, dando ao espelho d’água da Lagoa de Sacopenapã – que significa “das raízes chatas” em tupi -, tons amarelo-avermelhados únicos, brilhantes, divinais. O que me levou, por mais um desses mistérios do inconsciente, a relembrar as palavras marcantes do Filósofo Botocudo, expressas em nosso primeiro encontro ocasional num supermercado da cidade: “Torcer pelo Tricolor das Laranjeiras é torcer por uma potência da natureza, imprevisível e fascinante, sempre abalando, com passos de maremoto, os limites da medida humana.”

E, por uma dessas ironias do destino, ao chegar no Parque dos Patins, me deparo com uma cena insólita, que só, pouco a pouco, ao me aproximar do pequeno grupo, se desvela aos meus olhos, ou melhor, aos meus ouvidos, pois ouço a voz inconfundível do sábio das selvas tropicais, o Filósofo Botocudo. Ao seu lado estava o Atleticano Melancólico, parado num quiosque, tomando água de coco. A aparição dos dois personagens, após minhas lembranças de situações em que eles participavam, faz parte dessas coisas da vida que jamais poderemos explicar. Mas quem precisa de explicações quando estamos falando de forças cósmicas, metafísicas, que somente ocorrem entre os verdadeiros fãs delirantes, dominados por suas paixões clubísticas?

O xamã do tronco lingüístico Macro-Jê estava eufórico! Tinha acabado de voltar de Buenos Aires, onde fora acompanhar a saga da vitória tricolor no bairro de La Boca, junto com os 4 mil tricolores que saíram de toda parte do Brasil para presenciar o jogão histórico na capital portenha. Usando a indefectível calça jeans, sem camisa, os botoques étnicos, colares e cocares de penas, o corpo untado de jenipapo e urucum, com um escapulário com as cores do Flu sobre os ombros, mostrava para o Atleticano Melancólico, em seu Tablet, os vídeos e fotos que fizera durante a viagem. A figura pós-moderna do sábio de botoque discursava, categórico:

- O Fluminense devorou o Boca em plena Bomboneira! Como os verdadeiros brasileiros, as tribos indígenas que já se encontravam aqui há 12 mil anos antes da chegada dos portugueses, o Tricolor fez um ritual antropofágico para adquirir as forças do inimigo. A partir de agora, depois de comer o time dos xeneizes, ficará mais forte ainda! Os espíritos estão me dizendo que o século XXI será do Flu! O próximo papão de títulos da América e do mundo!

O Atleticano Melancólico olhava as imagens com um olhar distante, perdido, mas, de algum modo, feliz por estar ali. Quando me viram chegar, voltaram-se para me cumprimentar pela vitoria consagradora do Flu naquele estádio que transforma os bosteiros, como também são chamados os torcedores do Boca, em vampiros e zumbis possuídos, pulando e cantando nas catacumbas, famintos por vitórias, movidos pela paixão boquense.

De imediato, teci loas épicas ao mago Deco. Que jogadoraço! As contusões seguidas, no ano passado, não nos permitiram apreciar e compreender isso! Não é à toa que carrega o número 20 às costas: é o arquetípico craque da 10, só que em dobro! A bola vem para os seus pés e é acariciada com toques leves e sutis. Parece bola de encher de festa de criança, direcionada para o canto do campo que ele quiser, indo pousar, precisa e silenciosa, no corpo do companheiro de time, escolhido pela sorte para receber o presente de seus passes magistrais. E foi um desses passes/ traços digno de um Monet que pintou o primeiro gol Tricolor na Bomboneira - mais doce e abençoada do que nunca, maravilhada, na verdade, com a presença encantatório, guerreira e elegante, da massa tricolor.

A jogada tem início com uma falta sofrida por Tiago Neves, aos 8 minutos do primeiro tempo, na intermediária esquerda do ataque do Flu. Deco avisa que a bola é dele e manda Fred para a área. Então, começa o show, o primor de arte/ artesania psicofísica. O Mago dá um daqueles seus toques feiticeiros na pelota, que vai morosa, com movimentos de aristocrata displicente, e encontra Fred, o artilheiro do engenho e arte. Este, após se desgarrar de um zagueiro chiclete, dá uma raspada, quase sem alterar a fluidez de corrente de ar da trajetória da bola, com o lado direito da cabeça. O goleiro se espanta com tamanha beleza e domínio técnico, e não consegue pegar a redonda, que passa calma, entediada, esbarrando em seu corpo contorcido, e vai morrer no fundo das redes.

Nem com o 1 a 0 a torcida xeneize se cala, mas podemos ouvir, pela tevê , ao fundo, o grito delirante dos fãs do único tricolor do planeta – pois os outros são times de três cores. O Fluminense, que já vinha amarrando o Boca desde o princípio do jogo, não deixando os argentinos pressionarem, neutralizando o seu requintado toque de bola, é agraciado com um golaço, numa jogada nascida dos pés – e cabeças – de seus dois principais craques. Contudo, como é um péssimo costume seu, após fazer um a zero, o Tricolor se fecha mais na defesa. Somente no final do primeiro tempo os bosteiros conseguem realizar o sufoco que sua torcida exigia, e que o Flu, com equilíbrio, impedia.

Foi então que surgiu o terceiro herói dessa batalha de gigantes latino-americanos. Cavalieri, o goleiro cool, a reencarnação não passional do imenso Castilho, o maior goalkeeper tricolor de todos os tempos, mostra as suas armas, e as utiliza com técnica e sorte, pois, qualquer goleiro tem que ter, acima de tudo, uma ajuda generosa da sorte. Foram cinco defesas memoráveis, em menos de 2 minutos, apresentando segurança e precisão em diferentes tipos de exigência: de tiros a queima-roupa, a média distância, da grande área. Todas as defesas exigiam reflexo, agilidade e antecipação de raciocínio diante da jogada. Cavalieri foi um samurai tricolor dançando um balé cubista, exato, intransponível. Só com esse espírito pode ficar imune aos ensurdecedores gritos/ cantos dos barras-bravas da arquifamosa hinchada La 12, posicionada no primeiro tempo bem às suas costas no estádio que tem nome de caixa de bombons.

No entanto, nos primeiros minutos do segundo tempo, o Boca consegue seu intento: empata o jogo num lance em que Cavalieri não teve a mínima culpa. Mas as cores da noite, na mais famosa caixa de bombons arquitetônica do mundo, a Bomboneira portenha, eram, definitivamente, verde, branco e grená. Antes que o time xeneize pudesse cafungar em nosso cangote em busca da virada do placar, o Tricolor mais amado do planeta consegue fazer o seu mítico segundo gol.

Após uma cobrança de tiro de meta de Cavalieri, Fred escora a bola de cabeça para o garoto Wellington Nem, na zona esquerda do ataque do Flu. O Messi de Xerém dá um drible rápido e impetuoso sobre o marcador e cruza no outro lado da área, para a chegada preciosa e surpreendente do Templário Deco, guerreiro da Cruzada Tricolor rumo à Terra Sagrada de Yokohama. O Mago pega na bola de chapa, sem dominá-la, de primeira. A redonda vem, nem muito forte nem muito fraca, mas intensa, rápida, a ponto de desbaratar o goleiro adversário, passando por debaixo de seu corpo e indo morrer, absoluta, no fundo das redes. 2 a 1 para o Flu , placar que se manterá até o final da peleja. Momento em que os tricolores presentes entram em êxtase cósmica, iluminando de felicidade a noite da capital portenha que, certamente, será longuíssima para os cariocas.

O filósofo botocudo, respeitoso, até então, diante de meu estado delirante pelo Flu, para contrabalançar meu entusiasmo, resolve lançar mão de estatísticas para ratificar e engrandecer a proeza que foi a nossa vitória santa:

- Em trinta e duas partidas contra brasileiros na Libertadores, o Boca só perdera três vezes, antes de nós, para Santos, Cruzeiro e Paissandu. Em 14 finais e semifinais contra brasileiro, o time bosteiro apenas foi desclassificado duas vezes: pelo Santos de Pelé e pelo Flu de Tiago Silva, em 2008. O Boca Juniors estava a 36 partidas sem perder, há quase um ano, antes da derrota de ontem para o Flu...

Nesse momento, lembro-me de perguntar se ele havia encontrado em Baires alguns de nossos amigos, tricolores de antena e raiz. O Filósofo das selvas tropicais disse que sim, que estavam todos lá: o Velho do Restelo, saído das páginas de Os Lusíadas; a Viúva Botafoguense, de braços dados com o seu falecido, o Tricolor de Lábios Roxos; a Loura Indignada, que pegou o Latin Lover no flagra, traindo ela mais uma vez com a Amante Flamenguista; o Negão “de ventas raciais”, com seu casal de filhos lindos...

Então, fiz a pergunta que deveria ter calado. Perguntei ao Filósofo Botocudo se ele fora sozinho, se conhecera alguém lá, como foi a noite dele em B.A. etc. O sábio pós-moderno, mudando imediatamente de postura, gelou. Olhou para o infinito e disse que tinha se apaixonado perdidamente por uma mulher que apenas vira as imagens em outdoors e jornais, uma índia linda que não conseguiu encontrar, depois de passar a noite em claro procurando a cunhã. Disse que ela tinha uns lábios lindos, sobressalentes, que ele afirmava que não eram efeitos de botox e, sim, de botoque. O nome dela: Cristina Fernández de Kirchner...

Agora sim, ficara claro porque o Filósofo Botocudo estava andando com o Atleticano Melancólico. Ambos estavam vivendo a coita amorosa, a dor da saudade, a tristeza dolorosa da ausência da mulher amada. Me despedi dos dois, falando que tudo ficaria bem, e que o Fluminense voltaria a jogar, muito em breve, em Buenos Aires. Os sons e sentidos dessa minha última frase, por um instante, fizeram com que o fundo da retina do Filósofo se dilatasse como a de um jaguar que acabara de ver uma presa; mas, logo a seguir, os olhos do sábio tropical voltaram a ficar mortiços, embaçados, saudosos...