terça-feira, 8 de maio de 2012

O sonho da Viúva Botafoguense

Amigos, acordo na manhã do primeiro jogo da grande decisão do estadual carioca de 2012 com o telefone histérico, berrando pela casa. Ainda com fiapos de sonhos nos olhos, busco o aparelho às apalpadelas, mais para fazê-lo calar do que para atendê-lo. Na hora agá, sou tomado por um calafrio de responsabilidade e resolvo colocar o fone no ouvido. Qual não foi minha surpresa ao ouvir, do outro lado da linha, a voz de meu irmão mais velho, vibrando cada uma de suas cordas vocais para emitir palavras do mais puro entusiasmo tricolor:

- Se lembra, irmão? Há 41 anos atrás, a final com o Botafogo de 1971? Fiz a promessa que acenderia o dobro de velas do número da camisa do jogador do Flu que fizesse o gol da vitória... e foi o Lula, o ponta esquerda, o camisa 11... e você entrou na sala e me viu ajoelhado no chão, rezando, entre 22 velas... a partir daí surgiu a sua paixão pelo Fluminense... Lembra?

Em respeito à possessão verde, branca e grená que dominava a voz de meu irmão, respondi que sim, claro, lembrava sim, não com todos esses detalhes, mas lembrava muito bem da situação. Então, sem me deixar esboçar nada além do que esse sim lacônico, continuou sua fala encantatória, com a energia dos apaixonados translúcidos:

- Hoje o imenso Fluminense, o imortal, o eterno, a própria história viva do futebol brasileiro, entrará em campo com o espírito daquele jogo de 1971 reencarnado nos jogadores! Daremos um passeio, uma lavada no Botafogo!

E desligou o telefone sem nem ao menos escutar a minha educada retribuição, ainda um pouco sonolenta, à sua despedida. Estava dominado, dos pés à cabeça, pela alma da vitória, balbuciava vitória, respirava vitória, até os pontuais silêncios da sua fala elástica eram prenúncios de uma larga vitória...

Ainda abalado pelo inesperado augúrio de arúspice romano matinal de meu irmão, sem saber ao certo se acabara de vivenciar uma artimanha do sono ou da vigília, mudo de roupa e vou para o bar da esquina tomar o meu carioquinha de todas as manhãs.

Lendo o Jornal dos Sports, em pé diante do balcão, sinto o cheiro de uma flor rara ao meu redor... pensei, ainda cabisbaixo, na flor azul de Novalis, na brancura da flor de lótus de Buda, no perfume da flor de laranjeira...Mas quando alço meus olhos do jornal me deparo com todo o glamour e poesia da Viúva Botafoguense. Sim, a melindrosa dos loucos anos 20, sempre de boquinha vermelha à Glória Swanson, vestido tubular de seda, trazia, em uma das mãos, uma piteira com uma cigarrilha acesa na ponta, na outra, uma taça de champagne francesa ainda borbulhante.

Quando a darling me viu soltou gritinhos de felicidade: “Ulalá! Era o Sr. mesmo que eu estava procurando, Sr. Nelson! Sei que o seu território é por essas bandas! Por isso vim passear por aqui! Que prazer, meu querido”. E me deu dois beijinhos que não abalaram em nada o contorno de coraçãozinho de batom de seus lábios. Depois, mudou de tom: “Mas hoje somos inimigos! Estou aqui para propor uma aposta. Topas?” Respondi que sim, como não, ainda mais vinda de uma amiga tão especial. Ela, então, continuou: “O meu amado falecido, o Tricolor de Lábios Roxos, na noite passada me apareceu em sonho. Dizia que era melhor eu não ir ao Engenhão, pois eu sairia profundamente decepcionada de lá”.

Lembrei imediatamente, neste instante, das palavras possessas ao telefone de meu irmão. E tive uma antevisão momentânea: vi, em silêncio, a mais doce torcida do mundo vibrando, delirante, após um gol do time de Álvaro Chaves no Estádio João Havelange. Calei. A Viúva, aproveitando a deixa de meu silêncio, insistiu: “Está com medo Sr. Nelson? Toda vez que o falecido aparece em sonho, o Botafogo ganha! Assim, aposto uma noitada no Lamas, regada a Chandon e ópio, que o Glorioso sairá na frente na decisão!”

Continuei em silêncio. Por fim, olhei para a Darling de cabelo a la garçonne e disse: “Fechado!” A discípula de Coco Chanel era toda felicidade, se despediu com novos beijinhos e saiu dançando um charleston imaginário, balançando o colar de pérolas no pescoço e o headband de flores e pedras preciosas na cabeça.

Voltando pra casa, calmamente, pensava: o Fluminense hoje fará um partidaço! Um tricolor sabe, possui o dom da premonição da vitória! Hoje, ao cair da tarde, presenciaremos uma batalha memorável!

Bem, amigos, até o torcedor mais indiferente ao esporte bretão, aquele que diz que torce por um time apenas nas rodas sociais, para não se sentir constrangido ou excluído, sabia que o Botafogo estava invicto há 22 partidas este ano. O esquadrão alvinegro, além do mais, acabara de realizar, diante do Vasco, uma exibição de gala na final da Taça Rio, vencendo os cruzmaltinos por um convincente 3 a 1. Os sites de relacionamentos chegaram a dar mais de 80% de possibilidade de vitória ao Glorioso na final contra o Flu. Afora o fato de que a equipe pó-de-arroz não vencia a do Botafogo desde a inauguração do Engenhão...

Mas, como eu dizia, mesmo o torcedor alienado, entediado, indiferente ao futebol recebia as vibrações do revitalizadíssimo Clássico Vovô em suas narinas, em seus ouvidos, olhos e não podia, melhor, não queria, ficar à margem de uma manifestação tão decisiva quanto a final do carioca de 2012. A cidade respirava esse jogo pelos poros, bueiros, pipas, babas dos cães. Até o sacripanta mais empedernido, o mendigo mais esfarrapado, o religioso mais carola, se angustiava em dúvidas íntimas: “Hoje dará Botafogo ou Fluminense?”

E foi por essas e por outras que, ao subir as rampas de acesso às arquibancadas do João Havelange, me deparo com um morto, mais vivo do que nunca: o Tricolor de Lábios Roxos, o falecido adorado da Viúva Botafoguense! Estava sentado numa das muretas, apreciando a felicidade febril da massa pó-de-arroz se dirigindo para a parte que lhe cabia no Estádio. Quando me viu, me deu um abraço caloroso, apesar das suas mãos frias de habitante do além: “Sr. Nelson! É um prazer indescritível voltar a vê-lo! Tricolores de sua estirpe não existem mais! As cadeias genéticas atuais não comportam mais tamanha paixão!” Respondi-lhe, constrangido, que o prazer era meu e narrei-lhe, sem meias palavras, o sonho que sua amada me contara. Respondeu-me: “É Sr. Nelson, vou aprontar uma para cada lado hoje; entretanto, não poderei intervir mais em nada na partida. Deixarei tal tarefa para os deuses do futebol.” E sumiu, num átimo, ante meus olhos, sem deixar quaisquer vestígios...

Estava me lembrando desse encontro no intervalo do jogo, após os dois gols que definiram o placar até o final da primeira etapa. Certamente foi o Tricolor de Lábios Roxos, para agradar a sua amada, que fez o Carlinhos furar a bola chutada por Renato, deixando-a passar entre as suas pernas, para depois morrer no canto direto de Cavalieri, sem culpa nenhuma no lance, por estar com o campo de visão obstruído por uma massa de jogadores, não vendo a trajetória da bola, no primeiro e único gol do Bota. Assim como foi o morto também que mudou a linha da redonda, após a cabeçada de Tiago Neves para trás, enganando Sóbis e colocando-a, com açúcar e com afeto, nos pés de Fred. O artilheiro do engenho e arte, sem meio-termo, infalível nas horas decisivas, executou uma diamantina bicicleta, quase um golpe marcial em sua precisão e clareza. Tanto que Jefferson, o arqueiro botafoguense, ficou estático, embasbacado, sem ação, diante de força certeira do chute, sem nem ver direito como a bola fulminante entrou no fundo das redes a sua direita.

Pois sim, claramente, os dois primeiros gols da partida foram as duas diabruras que o Tricolor de Lábios Roxos dissera que iria aprontar no jogo de hoje. Mas, independentemente da intervenção sobrenatural, presente até mesmo na mais rastaquera das peladas, o Flu, após levar o primeiro gol, começou a tomar conta do jogo... e não largou mais a mão do leme da nau até o final do embate. Contudo, um nome foi o responsável por esse controle, pela orquestração, pela movimentação geral dos combatentes, ditando o ritmo de batuta na mão. Sim, pois tínhamos em campo um tipo de craque que não existe mais no futebol pós-moderno: o regisseur de todos os instrumentos/ jogadores em campo, inclusive dos que emitem sons adversários em contraponto: Deco, o gênio, o mago, o maestro, o xamã supremo da tribo tricolor.

Deco é uma síntese entre Didi e Ademir da Guia, entre Gerson e Carlos Alberto Pintinho. Um cracaço que molda as jogadas como um escultor, trabalhando cada lance com a calma do artesão. Além disso, tem o tempo da ampulheta nos pés, conduz com categoria incomum a andadura, a música das jogadas. Não tem pressa. Mas precisão. Não se afoba, não dá chutão. Pensa. A bola grudada nos seus pés. Pensa e age no momento exato: um leão atacando, um samurai desferindo golpes impiedosos, quando é o momento da investida fatal. Como fazia falta ao atual esporte bretão um jogador desse naipe, com domínio poético-musical geral da peleja! Ainda bem que Deco se recuperou das seguidas lesões e continua desfilando categoria, exuberante, pelos palcos/ gramados brasileiros!

E foi de uma dessas movimentações melódicas dos passes de Deco que saiu o gol de desempate. O Mago colocou uma bola deslizante, seca e geométrica, entre dois botafoguenses - que a viram passar sem entender quase nada -, para Sóbis ficar cara a cara com Jefferson. O atacante ainda teve a pachorra de passar a redonda para a perna esquerda, antes de colocá-la no ângulo direito do goalkeeper, de modo indefensável. O terceiro gol saiu de um lançamento do aprendiz de feitiço Tiago Neves, que, seguindo os passos do mestre Deco, fez um lançamento, da meia-direita do ataque tricolor, em diagonal para Sóbis - ele outra vez - driblar o goleiro, quase perder o ângulo da meta, mas, com faro de gol, colocar a bola nas redes, deixando o zagueiro desolado, caído no chão. O quarto, que fechou a tampa do caixão botafoguense, e pode ter selado o destino da taça deste ano na direção da sala de troféus tricolores, saiu de uma linha de passes magistral: Deco enfia uma bola reta, frontal para Sóbis que, de letra, a desvia para Fred; este dá um passe de bandeja, doce, doce, para o garoto Marco Júnior, nova pérola de Xerém, colocá-la, direta, firme, no fundo das redes... uma pintura de linhas cubo-futuristas!

Ao final do jogo, eufórico, transformando todos os torcedores tricolores em companheiros tribais de priscas eras, encontro a Viúva Botafoguense de braços dados com o Tricolor de Lábios Roxos. Ambos estavam felizes, preparados para uma festa qualquer, onde, certamente, haveria muito charleston e muita Chandon. Estranhei a alegria da Viúva, mesmo após a derrota, mas resolvi me calar. Apenas abracei-os, comovido por vê-los juntos outra vez. A Melindrosa, então, soltou o verbo: “Sr. Nelson, o jogo de hoje foi uma fatalidade, mas o Botafogo não está morto! Podemos muito bem reverter o resultado na próxima partida!” Claro, claro, respondi compreensivo. Ela continuou: “Estamos indo para o Lamas, vem com a gente? Não esqueci de nossa aposta! Hoje é tudo por minha conta!” E saiu andando serelepe, com seu passo de foxtrote, à procura de um táxi. O Tricolor de Lábios Roxos, já com outra garrafa de vinho na mão, chegou mais perto de mim e, em tom confessional, sussurrou: “Não posso ficar mais, tenho que ir! Cuida bem de minha amada adorada! E não fala nada para ela não, mas a Taça já é nossa!”

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