terça-feira, 10 de abril de 2012

As incontornáveis paixões



A Amante Flamenguista do Latin Lover e a Bailarina Vascaína, estudantes de artes cênicas da UNIRIO, chegaram mais de meia hora atrasadas à nossa entrevista. O fusca franciscano da primeira deixou elas na mão no meio do caminho, tiveram que se virar para chegar em minha casa a tempo. Quando abri a porta, me deparei com as duas de bochechas róseas e ar tempestuoso, dominadas pela ansiedade e pelos ventos. Depois das desculpas de praxe, sentaram-se na poltrona da sala, suspiraram fundo, abriram os seus laptops e um sorriso de repórter criminal. A Bailarina Vascaína, de chofre, perguntou:

- Sr. Nelson, por que o Fluminense? Como tudo isso começou?

Calmamente, respondi:

- Sou um pó-de-arroz nato, hereditário. Antes da primeira chupeta, da primeira palavra balbuciada, eu já era tricolor. Aliás, os elementos que compõem a minha cadeia genética, que remetem à minha origem mais remota, anunciam o futuro fã do time de Álvaro Chaves. Ser Fluminense não é uma condição, é uma natureza, um estado natural, anterior à civilização e à cultura. O mapa do céu, no momento em que nasci do ventre de minha mãe, já previa a minha alma tricolor, que me acompanha desde sempre, onde quer que eu vá, como um anjo da guarda vivo e fiel...

A Amante Flamenguista, inquieta e impaciente, arremete:

- Sr. Nelson isso é pura retórica, pura literatura...

Respondi que sim, mas que mal há nisso? Não é menos legítima ou saudável a minha resposta pelo fato de não passar de literatura. Há fatos, acontecimentos que só podem ser narrados de modo lendário, mítico, a mera informação pétrea e objetiva é incapaz de traduzir a violência sagrada e poética de determinadas paixões. A rubro-negra, irmã mais nova do saudoso Paralelepípedo de Albuquerque, insiste, mais incomodada ainda:

- Preciso de dados, Sr. Nelson, quem era tricolor na sua família, qual foi o primeiro jogo que o Sr. assistiu, o seu interesse pelo Flu surgiu por amor a um ídolo, à camisa, ao time, à torcida...

De modo brusco, e solidário com meu desinteresse em reduzir a dados o óbvio ululante, a Bailarina Vascaína interrompeu a colega...

- Que papo é esse, garota? Viemos aqui para ouvir um oráculo, um sacerdote, um fanático que torce e distorce pelo Fluminense! Que vê com o olho da imaginação e do prazer, levitando em êxtase e entusiasmo, como os grandes santos místicos, possuído por uma paixão absoluta...

Constrangido, tanto pela fala de uma com a de outra, mudo radicalmente de assunto e pergunto se elas aceitariam degustar um Romeu e Julieta com um copo d’água. Os olhos das duas, após minha proposta, vazam luz! Nesse instante, toca o telefone. É o Latin Lover, o tricolor canalha doce, que não consegue se decidir entre a Loura Indignada e a Amante Flamenguista...

Depois dos inevitáveis comentários calorosos sobre as últimas notícias do Flu, o Latin Lover quer saber se a rubro-negra já acabara a entrevista. Estava carente, queria encher de beijos a sua Amada. Respondi que sim, que só iríamos comer uma goiabada com queijo dos deuses e ela sairia. Ao ouvir isso, a moça arrancou o telefone de minha mão e gritou, efusiva e ardente, a boca quase engolindo o aparelho: “Estou voando para te encontrar, meu amor!”

E partiu, deixando a porta aberta, e eu e a Bailarina Vascaína, felizes, comendo nosso Romeu e Julieta, com um copo d’água na mão, sob o suave delírio de nossas incontornáveis paixões clubísticas...


Texto produzido para o blog: http://nazagaenasartes.wordpress.com/