terça-feira, 15 de julho de 2014

Ser ou não ser vira-latas?

Amigos, termina a Copa das Copas e a Alemanha é a grande campeã! Sim, a Alemanha que não fugiu de suas raízes idealistas e veio praticar, no Brasil, a obra de arte total, a Gesamtkunstwerk wagneriana. E não digo que os alemães buscaram isso apenas na bola rolando, mas nas preparações técnicas de antes e depois das partidas, nas relações de convívio com os brasileiros, nas posturas que assumiram diante de nossa e outras culturas, nas atitudes diante da imprensa e, consequentemente, dos olhos e ouvidos eletrônicos do mundo. Os alemães se esmeraram nos mínimos detalhes para não errar em nada, para serem perfeitos e precisos, para serem campeões. Estudaram, se dedicaram, planejaram, colocaram em prática e venceram. Adicionaram ao seu tradicional futebol força a leveza chata do tic-tac espanhol, apresentando um estilo particularíssimo de jogar, nada botinudo, aberto, longe do famigerado e entediante futebol de resultado. E foram, além de tudo isso, um grupo unido, com o impecável comportamento de universitários bons-moços, simpáticos, cheios de fair play e humildade, etiqueta e elegância. E digo mais: campeões absolutos: dentro e fora de campo! 

Sem tirar um pingo de mérito dos alemães, afirmo, sem papas na língua, que a fratura exposta que sofremos na acachapante derrota de 7 a 1, é fruto de um longo processo de mutilação e esfaqueamento levado a cabo, de modo sistemático, por nós mesmos. E a origem disso tudo, a meu ver, é clara como um céu de brigadeiro, explícita como um trauma típico, prato cheio para psicanalistas de quatro costados, longe ou perto dos divãs: o sonoro fracasso do time transbordante de craques, sob comando de Telê Santana, em 1982. A partir dali, ser um Rei Zulu ou Príncipe Etíope da arte da bola virou uma danação milenar, que devia ser minuciosamente extirpada de nosso futebol. E o que aconteceu? A verdadeira maldição que nos perseguiu até 1958, o complexo de vira-latas, retornou durante as luas cheias mais improváveis, e os jogadores brasileiros passaram a se revirar, com constância cada vez mais freqüente, como Boris Karloffs tranformados em lobos mal-ajambrados e vadios. 

A partir da derrota da seleção comandada por nosso Fio de Esperança tricolor, mestre Telê, o escrete nacional passou a entrar em campo como um Hamlet diante da caveira de Yorick, cheio de dúvidas metafísicas e existenciais: “Somos ou não somos ainda vira-latas?” Pelas esquinas, bares e tablóides, “entendidos” de toda cepa, relinchavam como quadrúpedes de 28 patas: “Os esquemas táticos evoluíram, os europeus são modernos, sofisticados, e nós estamos atrasados, não sabemos nada de futebol, temos que mudar tudo urgentemente!” E, como reis que desprezam a própria realeza, Lears alucinados sem Bobos lúcidos ao redor para dizerem as maiores verdades brincando ou as mais irresponsáveis brincadeiras com verdade, começamos um trabalho sistemático de autoflagelo medieval! E isso abriu um largo espectro reativo que se reflete na base, nos fraldinhas, nos infantis e juniores, impregnando a mentalidade de todos, do dirigente corrupto, dos técnicos e jogadores, do subalterno baba-ovo, das donas de casa corujas, dos descolados e playboys da zona sul, do pé-rapado mais endividado, do intelectual pós-doutor, do banqueiro blasé, do mendigo na sarjeta que, antes de apagar, mamado como o diabo gosta, ainda balbucia misticamente: “O craque não tem mais vez no futebol moderno!” 

Nesse percurso, ainda demos alguns suspiros de genialidade com a presença de dois ou três craques renitentes, obsessivos, que superaram a licantropia de filme B, de makeup rastaqüera, feita com o restolhal das superproduções, e conquistaram, a serviço de times de boa qualidade e prudentemente organizados, duas taças – em 94, Bebeto e Romário; em 2002, os dois Ronaldinhos e Rivaldo. Sempre vacilantes entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Contudo, em 2014, finalmente conseguimos o que perseguíamos desde 1982: transformar nossos deuses e heróis lúdicos, ensaboados, improváveis vira-latas entronizados - que nunca souberam a letra parnasiana de nosso hino nacional, que nunca tiveram ataques epiléticos de civismo ornamental, que sempre chamaram nossos adversários de Joões - em novos ricos malhados e politicamente corretos, em lobisomens sem glamour, autênticos canastrões amadores, multitatuados, multiconectados, ajeitando o bigode de mariachi granadeiro ou os cabelos descoloridos platinados diante de selfies e telões.

2 comentários: