sexta-feira, 18 de maio de 2012

A cara de pau do juiz colombiano



Amigos, o Fluminense é imenso. Sim, é o óbvio, todos nós sabemos que o Tricolor das Laranjeiras é capaz de feitos inigualáveis e que já nasceu com a vocação da eternidade. Somente as toupeiras desavisadas, cavando seus túneis subterrâneos, poderiam deparar-se com verdades luminosas como essas e fazer pouco caso. E foi o que aconteceu quando o Pó-de-arroz desceu aos infernos da terceira divisão, lambeu a língua de Satã, sendo obrigado a conviver com a execração impiedosa dos rivais, e retornou mais forte e radiante do que nunca. Isso porque o Flu é colossal, incontornável, cósmico e renasce cada vez mais exuberante, sempre que é desafiado a exibir a sua andadura de gigante, de história viva do futebol brasileiro e mundial pelos campos do planeta.

Acabo de ler a notícia de que o Fluminense é o time brasileiro que mais venceu os argentinos nas edições da Copa Libertadores. Vocês têm a noção do que isso significa? Mal começamos a levar a sério a maior competição americana e já estamos fazendo história outra vez. Não duvidem nunca da imensidão do time pó-de-arroz, pois ele sempre responde com novas e surpreendentes façanhas, capaz de encher os olhos dos heróis épicos das epopéias mais sublimes!

Enquanto eu escrevia essas frases na redação do jornal, entretido no ato de selecionar palavras precisas para expressar a magnanimidade do Flu, sinto uma mão, grande e calejada, pousar em meu ombro. Quando me volto para ver quem estava ali, o cigarro no canto da boca, fico estarrecido ao me deparar com a figura mítica e hierática do Velho do Restelo. Sim, meus amigos, o severo, o implacável, aquele que sempre condenou a ousadia do povo português de se lançar na aventura marítima para as Índias, o personagem torto de Os Lusíadas, de Camões, surge ante meus olhos. Barba de patriarca bíblico, túnica inconsútil, cajado nas mãos, de longa cabeleira branca caída sobre as costas, o Sr. Antiaventura solta essas palavras proféticas, com sua voz de timbre centenário: “O Fluminense perderá hoje para o Boca Juniors na Bomboneira! Será, no entanto, uma derrota heróica, contra tudo e contra todos! Mas não se desespere, o Tricolor mais famoso do planeta se classificará ainda assim. Venceremos no jogo de volta no Estádio João Havelange. Nada para o Pó-de-arroz é sem drama, sem suor, sem lágrimas. O Flu é um time operístico. Fará uma partida memorável na quarta que vem!”

Na hora em que abro a boca para responder, o Velho do Restelo já se encontra na porta de saída, serelepe, ágil como um garoto, no alto de seus quase quinhentos anos. De longe, antes de sumir, fantasmático, ainda vaticina, em tom de baixo profundo: “Cuidado com o juiz hoje à noite, Sr. Nelson, cuidado com o juiz colombiano!” Só consegui levantar meu queixo, caído de espanto com tal aparição, quando a cinza do cigarro que estava no canto de minha boca se desfez sobre o meu colo...

O Velho do Restelo já me visitara após a derrota para o América Mineiro no campeonato brasileiro do ano passado, na saída da torcida das arquibancadas, desolada após o inesperado placar de 2 a 1 que, praticamente, nos alijou da disputa do Brasileirão. Suas profecias semearam uma nódoa negra nos rincões mais silenciosos de minha alma, um mau presságio qualquer para o jogão desta noite em Buenos Aires. Contudo, como otimista obsessivo que sou, fiel representante da seita de tricolores apaixonados, sempre à espera de mais uma peripécia mágica na trajetória de feitos gloriosos do Flu, fui pra casa assistir ao jogo na tevê munido de meu indefectível arsenal de torcedor consciente do misticismo inato do time da Pinheiro Machado: cerveja, camisa tricolor tatuada na pele e muita fé!

Assim que o jogo começou, vi o Time de Álvaro Chaves dominar e domar os xeneizes, sem nem tomar conhecimento do pandemônio instaurado na Bomboneira pelos ensandecidos zumbis e vampiros da torcida bostera. Mesmo sem 5 titulares, o Flu passeava pelo temido campo do adversário. Contudo, cometia o erro supremo nas partidas decisivas: perdia gols... e um deles feito, como o que Jean perdeu cara a cara com o goleiro, jogando a bola por cima do travessão, tendo, além do mais, a opção de poder lançar Rafael Moura, livre na pequena área, a sua esquerda. A cada gol perdido eu ouvia um som estranho vindo de minha janela, um grasnar doloroso e profundo. Como o jogo não parava, e meus olhos estavam vidrados no epifenômeno, na aparição divina que é o Fluminense em campo, não dei atenção àquela sonoridade estranha, a meio passo entre a melodia e o ruído.

O Boca começou a mudar a situação a partir de uma jogada infantil de Carlinhos, nosso grande lateral esquerdo que, nas horas decisivas, faz os lançamentos abençoados para os artilheiros marcarem gols salvadores. Mas hoje a missão dada pelos deuses do futebol a um dos principais canhotos de nosso time foi diametralmente oposta: realizar o que o juiz, o time e a torcida argentina esperavam: cometer falhas tolas, de quem não estava ligado na complexidade de fatores psicofísicos que estão em jogo no momento em que batalhas de ódios imemoriais estão acontecendo... o direito a erros primários estava cedido ao time do Boca, ao qual o juiz colombiano era extremamente concessivo, diria até paternal, mas, para o Fluminense sobrava apenas o jugo do carrasco, o implacável gesto da lei fria e intolerante!

E foi sob essa ótica que Carlinhos foi expulso aos 34 minutos do primeiro tempo, o que transformou um jogo que, a qualquer momento o Flu poderia ganhar, num salve-se quem puder homérico de ataque contra defesa. A raça e a dedicação não abandonaram jamais as hostes tricolores, que lutavam bravamente a cada jogada, a cada respiração. Até que veio o intervalo do primeiro tempo e o alívio momentâneo para a nação verde, branca e grená. Nesse instante, já pela quarta ou quinta vez, ouço novamente o grasnar fundo, metafísico em minha janela. Resolvo decifrar o mistério. Quando abro a persiana, me deparo com - nada mais, nada menos - o Corvo de Edgar Allan Poe, pousado num “alvo busto de Atena”, e emitindo, agora de modo claro para mim, o seu arquifamoso bordão: “Nunca Mais”!

Nem pensei duas vezes: num ímpeto guerreiro, dei um safanão que levou corvo, busto de Atena e bordão agourento para longe de minha janela. O busto espatifou-se no chão da rua, o corvo saiu voando para não sei onde e o bordão não se ouve mais, nunca mais. Ouço sim, o telefone tocando. Vou atender e é a Loura Indignada do outro lado da linha. A deusa anglo-saxã, certamente mantendo num único ritmo, semelhante e constante, o movimento da mão direita e do pé direito, num gesto enfático de reprimenda, falou: “Sr. Nelson, o que está acontecendo! Trata-se de uma tragédia anunciada! Todos sabiam que o colombiano era um safado, um juiz caseiro, picareta, mercenário e que ia roubar pro Boca! A Conmebol está armando das suas outra vez para que os times brasileiros não se encontrem nas finais. Isso é vergonhoso, Sr. Nelson! E ninguém faz nada e ninguém fala nada? O Fluminense deveria não voltar para o segundo tempo e, depois, pedir para a CBF abandonar de vez a competição! O cara de pau do juiz colombiano, além de expulsar severamente o Carlinhos, ainda não deu o pênalti no finalzinho, numa cabeçada do nosso zagueirão Anderson, cujo destino certo da pelota era o fundo das redes, tirada com o braço pelo xeneize Erbes de modo escandaloso... Até os jornais argentinos, bairristas como eles só, vão dizer amanhã, pode me cobrar, que houve a penalidade máxima, Sr. Nelson!”

Ao escutar seu discurso enfezado, o aparelho telefônico em minhas mãos parecia uma concha saída de mares profundos, emitindo sons de forças matriarcais indomáveis... Entrei em estado de empatia absoluta com a voz de solo de guitarra telúrica da deusa viking, pois a indignação dos justos é comovente, vital, revigorante! Retruquei, então, tentando ser equilibrado e contido: “Podemos até não empatar ou vencer esse jogo, o que é o mais provável, mas o sentimento suscitado pelo arbítrio dessa injustiça se apossará de todos os tricolores mortos ou vivos! O jogo da semana que vem não será apenas do time do Fluminense contra o Boca Juniors, mas, sim, deste último contra toda uma nação de delirantes apaixonados, em êxtase verde, branco e grená, com sede de vitória nunca antes sentida na história das batalhas imemoriais deste planeta!”

A Loura, então, num gesto frívolo e apressado, me respondeu: “Vou desligar, Sr. Nelson, o segundo tempo vai começar. Saudações!”. Como previsto, o Boca pressionou o Flu até conseguir seu gol na segunda etapa. Mas nosso samurai cubo-futurista, o imenso Cavalieri, mantendo viva a tradição da leiteria de Castilho, fez defesas maiúsculas durante toda a partida, evitando uma possível goleada. Apesar da criação de algumas chances pelo nosso ataque desfigurado, não conseguimos o empate. Contudo, o germe da revanche, da força que impulsiona os indignados já tinha sido lançado, já começava a crescer no coração e na mente de cada membro da nação pó-de-arroz.

Sabemos que o time bostero é useiro e vezeiro em conquistar a classificação na casa dos adversários, é um time copeiro, principalmente quando joga a Libertadores. O que poderá acontecer, não resta dúvidas. No entanto, dessa vez, terão que suar em dobro a camisa de cores tiradas da bandeira da Suécia, pois vão ter que enfrentar não apenas um time de futebol sedento por revanche, com sangue nos olhos, mas a indignação febril de 10 milhões de tricolores clamando por justiça!

4 comentários:

  1. Nelson Rodrigues enviou o texto acima. Não há a menor dúvida. Obrigado, Nelson! Seu retorno sempre será bem-vindo e suas profecias sempre se realizarão. A faca já está na boca, mordida com força. Quarta-feira faremos um jogo memorável, como todos os que fizemos, sempre que precisamos. O Fluminense é enorme e superará em campo todos os obstáculos, inclusive os medíocres e bandidos juízes e auxiliares.
    Rumo ao topo das Américas e, depois, do Mundo.

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  2. Valeu, Paulo! Pelas palavras amigas! Vamos em frente! A quarta-feira é nossa! Abs, André Gardel

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  3. Querido Andre Gardel, quarta-feira é NOSSA!!! ;)
    E 'xô' Corvo 'maRdito' (do meu querido Poe) com seu bordão agourento!!! Que a profecia do Velho do Restelo se cumpra: "O Tricolor mais famoso do planeta se classificará" para a nossa mais que merecida alegria.

    Ler suas crônicas é sempre um prazer, meu caro mestre.
    Um beijo grande,
    V.

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  4. Valeu, queridíssima amiga!
    Agora é tudo ou nada na quarta!
    O prazer é todo meu!
    Bjs

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