domingo, 6 de novembro de 2011

A loura indignada

Amigos, ontem, ao sair de alma lavada do clube mais tradicional, mais encantador, mais doce do planeta, cruzo, numa esquina desleixada das Laranjeiras, com uma loura indignada. À distância, parecia que a mulher estava em meio a uma briga de casal, numa discussão que já ultrapassara o mero pedido de separação. Devido à ênfase seca dos gestos, pois ainda não podia ouvir a conversa, deduzi que ela falava de temas cruéis, de final de relacionamento - como partilha de bens, pensão alimentícia, guarda das crianças – com um interlocutor que, certamente, era o próprio marido infiel. Via apenas aquela figura esguia, numa das mãos a coleira de um cãozinho ruivo, indiferente a tudo, na outra o dedo em riste, coordenando movimentos para cima e para baixo em sincronia com um dos pés, vestidos com as sandálias da indignação. A pessoa a quem se dirigia estava sentada num carro estacionado na calçada, de costas para mim, oculta a minha visão.

Quando me aproximei, tive, simultaneamente, dois espantos num só golpe: um visual, outro auditivo. Primeiro, porque o interlocutor era um homem aleijado, sem as pernas, que vendia balas nos sinais para sustentar a sua dignidade de cidadão marginalizado, e que se encontrava numa posição mais relaxada do que apaixonada; portanto, não possuía, a princípio, o perfil de latin lover canalha, que acabara de ser desmascarado pela loura indignada. Depois, pela frase terrível que ouvi, com ares de vaticínio, saída da boca do sujeito, e que me fez dar toda razão à mulher. “O Fluminense, que não tem mais chance de ser campeão, no máximo vai arrancar um empatezinho suado lá no Sul; o Botafogo vai ganhar do Figueirense; o Vasco, do Santos; e o Flamengo vai tomar um sacode do Cruzeiro no Engenhão...”

Amigos, estávamos a seis rodadas do final do Brasileirão de 2011, um dos mais disputados, mais emocionantes, mais equilibrados desde que o sistema de pontos corridos foi instituído na competição, e eis que surge um profeta! Isso mesmo, um profeta que emerge do nada, sem a bênção divina, sem um séquito de fiéis, sem uma trajetória mística, sem uma obra consagradora qualquer! Filho das ruas calorentas e malandras da cidade de São Sebastião, da cultura oral mais improvável e mais poética, placidamente encostado num Fiat pálio cinza, surge o profeta destilando melífluas visões premonitórias!

Meu primeiro ímpeto foi parar ali e me colocar ao lado da loura indignada, fazendo coro ao discurso enfezado dela que, só agora, na minha passagem por eles, pude captar o sentido. Falava que nenhum mortal ou imortal, depois das provas que o autêntico Tricolor dera nos últimos anos, podia duvidar mais do impulso heróico, das arrancadas inesperadas, salvadoras do Fluminense. E que os estatísticos costumavam perder seus empregos, sempre que abusavam de suas previsões lógicas para a equipe centenária das Laranjeiras. Contudo, segui em frente, não parei, tinha compromissos que me tiravam do lugar de flâneur carioca, com tempo de sobra para as inesperadas delícias do cotidiano, e me colocavam como mais uma peça da engrenagem contemporânea do capitalismo neoliberal. Pude, entretanto, já na outra ponta da rua, ouvir ainda uma gargalhada amarela do profeta de ocasião ecoar, após a abertura do sinal, e se misturar ao barulho dos carros que arrancavam.

Como ninguém é profeta em sua terra, o nosso querido homem das ruas errou em todas as suas previsões. Talvez esteja, nesses dias de superinformação globalizada, mais influenciado pelos estatísticos do que pelos místicos visionários. O Flamengo goleou o Cruzeiro; o Vasco perdeu para o Santos; o Botafogo, para o Figueirense e o Fluminense...bem, o Fluminense calou, mais uma vez, os que querem tirar a magia e a graça encantatória do futebol: venceu o Inter, em pleno Beira-Rio lotado, por um milagroso e imponente 2 a 1.

Talvez o placar não reflita, como é comum no esporte bretão, a verdade da partida. Não que o Flu tenha imprensado o time colorado, perdido infinitas chances de gol, dando o famoso sufoco; nem, ao contrário, que o Internacional tenha feito o mesmo com o tricolor. A consagração do time carioca veio, justamente, por ter amarrado o time do Sul, não deixando que ele crescesse em nenhum momento, conduzindo a dinâmica do jogo com maestria durante quase os 90 minutos. O Inter, que venceu os principais candidatos ao título em sua casa, com o apoio de sua fanática torcida, impondo um ritmo alucinante aos adversários, não esperava tamanha maturidade do time carioca. E, diante de um Flu operístico, viu a sua estratégia ser minuciosamente desconstruída. Principalmente, pela atuação de gala de alguns jogadores, peças fundamentais nos diferentes setores da equipe das três cores que traduzem tradição, e da calma e inteligência, nem sempre constantes, do técnico Abel.

Sóbis foi sublime no ataque, ao lado de um Rafael Moura artilheiro e guerreiro; Edinho e Valência foram implacáveis na marcação e no desarme; a dupla de zaga, apesar da falha infantil de Leandro Euzébio, mostrou-se quase sempre segura; os laterais eficientes e regulares no apoio e na defesa, como sempre. Mas o nome do jogo, o craque zen que desequilibrou as ações, foi o mago Deco. Sim, o jogador que custou milhões aos cofres do Flu e de sua patrocinadora; que jogou pouquíssimas partidas, já que teve problemas físicos que o levaram a pensar até em encerrar a carreira. E que ainda não tinha dito a que veio de modo tão enfático como dessa vez. Primeiro, se readaptando ao futebol brasileiro; logo a seguir, sendo coadjuvante do nosso saudoso cracaço argentino Conquinha; e, por fim, vítima que foi de inúmeras e renitentes contusões.

Deco regeu o meio de campo tricolor com o controle de cada instrumento da orquestra de jogadores dispostos em campo. Foi preciso em dois lançamentos metrificados, escandidos, postos com a mão nos pés dos companheiros de equipe. O lance do primeiro gol certamente foi pintado pelo autor da Mona Lisa, com perspectiva renascentista e tudo o mais. O passe de calcanhar de Sóbis, que deslocou três colorados; a calma de Edinho na linha de fundo para encontrar Deco livre no bico da grande área; a bola tocada com açúcar pelo Mago, fazendo um arco flexível no ar, até atingir a cabeça de Rafael Moura, que estava na cara do gol, na hora certa, no local certo. Foi uma jogada para ser rememorada eternamente, como os gols da seleção brasileira na Copa de 70, quando, de repente, em meio à disputa heróica de botinadas e empurrões dos jogadores, comuns às partidas que valem ouro, acontecia um suave milagre, e o futebol era elevado à categoria de grande arte, com assinaturas coletivas leves e elegantes, inscritas no quadro do campo com estilo e paixão.

O segundo gol tricolor também foi fruto da antevisão da jogada por parte de Deco, descobrindo uma brecha iluminada, num rápido átimo, no meio da floresta negra da tática colorada. Clarão que deixou a bola chegar limpa, aconchegante, aos pés de Rafael Sóbis que, com sabedoria e precisão samurai - mas de um samurai de corpo relaxado - colocou a bola no canto preciso, sem chances para o goleiro do Inter...

Amigos, por isso, vos falo: o Fluminense ganhou com a autoridade do campeão! Pode até não ser, pois nunca na história dos Campeonatos Brasileiros tivemos tantas equipes juntas disputando pau a pau um título e, ao mesmo tempo, cedendo-o, parecendo abrir mão, de modo displicente, do desejo de agarrar com unhas e dentes o almejado caneco... Agora, revendo o meu encontro inesperado com o casal insólito, à véspera do jogão decisivo entre Fluminense e Internacional, descubro que errei de profeta! A verdadeira profetisa era a loura indignada! A verdadeira pitonisa! A sábia!

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