domingo, 20 de novembro de 2011

Um passeio em Floripa

Amigos, estava eu sentado no sofá de minha casa, me abanando com a revista da tevê, quando tocou o telefone. Fui atender, e qual não foi a minha surpresa ao ouvir, do outro lado da linha, a voz espasmódica da Loura Indignada. Estávamos no intervalo de Fluminense e Figueirense, jogo amarrado, àquela altura, a um sonífero zero a zero. E, se tivéssemos que apontar um time melhor em campo, o esquadrão de Santa Catarina seria o eleito, sem a menor sombra de dúvida. De imediato, fiquei intrigado com o fato da Loura possuir meu número telefônico, mas, senti, também, que fazer uma pergunta comezinha dessas, diante da potência telúrica que a voz dela disseminava pelo ar, seria desfibrar a beleza e o mistério daquele ímpeto indignado. E a indignação, vocês sabem, pode construir e destruir impérios...

Tinha visto a Loura Indignada apenas de passagem, numa rua desleixada de Laranjeiras, e nunca imaginei que pudesse, ao menos, saber de minha existência. Mas a voz era inconfundível e, enquanto ela esbravejava com a elegância dos apaixonados incorrigíveis, eu via, imaginando, seu pé esquerdo em sincronia com o dedo em riste, do outro lado da linha: O que está acontecendo com esse time, Sr. Nelson? Só porque o Corinthians venceu o Galo estão jogando a toalha? Estão esquecendo que somos o clube, a torcida das causas impossíveis? Todo mundo trotando em campo, todos blasés, todos entediados e mortiços? Será que o velho Fluminense tão Flaubert, esteta e desapaixonado, renasceu do gelo, fênix às avessas? O que está acontecendo com a força cósmica encarnada na camisa e na alma tricolor? O quê, meu deus, o quê?!...

Silenciei em respeito ao lamento desesperado, de força matriarcal, daquela mulher anglo-saxã. E, por alguns segundos, ouvimos apenas o ruído vazio da linha, o nada ecoando a pergunta sem resposta para os dois ao telefone. Até que, primeiro num balbucio tímido, e, depois, numa crescente euforia de renascimento, de quem intuía uma nova gênese vital, afirmei: o Fluminense voltará outro para o segundo tempo! Venceremos de goleada! A loura, após alguns segundos de silêncio sepulcral, soltou uma gargalhada nervosa: Mas é um otimista delirante! Adoro os otimistas delirantes! O Fluminense vencerá de goleada, sim, de goleada! Sr. Nelson, meu dia está salvo! De goleada... e desligou o telefone sem se despedir, como uma criança que tinha brincadeiras urgentes a esperá-la...

Amigos, que mortal em pleno domínio de sua consciência, mais sã e mais lógica, poderia imaginar o que aconteceria no segundo tempo do jogo no Estádio Orlando Scarpelli? Quem poderia supor que o Fluminense golearia o time sensação da reta final do Brasileiro 2011, o Figueirense, que estava a 14 jogos invictos, atropelando os adversários mais temíveis sem qualquer dó. Um time muitíssimo bem organizado, à européia, cerebral, coletivo, de toque de bola refinado, dirigido pelo tetracampeão Jorginho, o mais fiel discípulo da escola Dunga de treinadores. Nenhum mortal iluminista, obviamente, filho da razão e da estatística, poderia imaginar o que aconteceria no segundo tempo do jogo. Mas os vivos e mortos alucinados pelo Flu, que sabem que as forças desveladas pelas três cores que traduzem tradição são de outra natureza - se dando na esfera do mítico, do sagrado, do sobrenatural, dos fluxos arcaicos e misteriosos, do poético -, aceitam que tudo é possível quando o time de Álvaro Chaves entra em campo. Por isso, os cardíacos andam sempre com seu isordil; os extáticos, com seu lexotan.

E o que presenciamos foi um segundo tempo memorável, em que o Fluminense passeou em campo, como se o gramado do simpático estádio no bairro Estreito de Florianópolis fosse os Champs Elysèe, em fim de tarde de sol ameno, em pleno século XIX, com pintores impressionistas pontilhando, maravilhados, as mudanças de luz na paisagem ao redor. E foi uma simples mudança de posicionamento no meio de campo tricolor (a troca de posição entre Diguinho e Deco), que levou nosso Mago, mais uma vez, com sua varinha de condão e chapéu de Merlin, a dominar, absoluto, o jogo, ditando a andadura e o ritmo, em adágio cantabille, da partida. Sim, pois o craque luso-brasileiro não se afoba, não se precipita, não perde o seu andamento interior. Assim como Sóbis e Fred, o trio experiente, aristocrático e infernal que, finalmente, o Tricolor tem conseguido colocar, de modo regular, em campo.

Contudo, de novo, Fred estava iluminado. Ou melhor, era, ele próprio, o sol na suave noite da cidade de Santa Catarina. O artilheiro das Minas Gerais fez três gols na goleada de quatro que o Flu sapecou no Figueira. Sete gols em dois jogos! O primeiro, mal havia começado o segundo tempo - e, diga-se, na primeira bola em que o atacante de engenho e arte recebeu limpa em todo o jogo – foi um primor de clareza e domínio de posicionamento: de esquerda, chutando do bico da grande área, forte e rasteira, Fred colocou a bola no cantinho esquerdo do goleiro catarino. O segundo, bem, o segundo foi um lance de pura sorte. Mas qualquer ser humano, para poder crescer, virar adulto, envelhecer, tem que ter sorte, se não, nasce natimorto, é atropelado na esquina, falece num lance casual qualquer. A bola cruzada da esquerda, vinha na direção do goleiro Wilson e do zagueiro adversário, um negão “de ventas raciais”, mas os dois, quase com delicadeza, se confundiram, e a bola chegou, mansa, aos pés de Fred, com o gol escancarado a sua frente: bola no fundo das redes...

O terceiro de Fred nasceu de uma jogada de Lanzini, a jóia portenha do River Plate emprestada ao Fluminense, que deu um balãozinho por sobre a linha de zaga do Figueirense, deixando o artilheiro cara a cara com o arqueiro, e Fred, sem deixar a bola quicar, meteu no canto direito de Wilson, abandonado sob os desproporcionais nove metros e meio de sua meta. Marquinhos fez o seu também, nascido de uma triangulação magistral: depois de um toque do artilheiro para Deco, que, preciso e displicente, com o desleixo do gênio, encostou, com o lado de fora do pé, para o meia-esquerda marcar quase sem esforço; tudo isso acontecendo dentro da grande área do Figueirense, que virou um centro recreativo para as peripécias do ataque tricolor.

Terminado o jogo, a torcida em festa no Orlando Scarpelli, entrevistas dos jogadores, replay dos gols, comentários entre equilibrado e entusiasmado dos comentaristas. Desligo a tevê e vou ao bar da esquina tomar uma cerveja, em comemoração à atuação de gala da esquadra verde, branca e grená. Assim que acabo de dar uma longa golada no chope espumante, saboreando com prazer o líquido dourado, reconheço, no fundo do bar, aos beijos e abraços, sentados numa mesa escondida, o Latin Lover com uma outra mulher, que não a Loura Indignada. O sujeito de cabelo gomalina, bigodinho fino e camisa florida aberta no peito, cheio de colares, também me vê. Pede licença à nova amada, que se mostra aborrecida com a atitude do amante, e vem falar comigo.

Sr. Nelson, que vitória santa! Que jogo dos deuses, encantador! Como jogou o Deco, o Sóbis, o Marquinhos, o Fred... O Fred parecia um beato bíblico, disseminando milagres pelos sertões! Estou até agora embriagado com nossa vitória! Respirando, comendo, transpirando nosso passeio monumental pelo Orlando Scarpelli! Mas sabe com o que estou preocupado? É que os matemáticos estão dando 4% de chances de o Fluminense ser campeão. Tenho medo de que o time amarre uma máscara daquelas! Sabemos que o Flu só se dedica de corpo e alma às missões impossíveis; uns 2% de chances seria a medida exata. Teria certeza absoluta, então, de nosso triunfo!

Os olhos do Latin lover tinham um brilho prismático, o cinismo do conquistador cedera lugar às feições trêmulas dos grandes santos místicos! Parecia que acabara de receber uma mensagem divina, que saíra de uma experiência de êxtase e entusiasmo, todo o seu corpo estava a um passo de levitar. Contudo, de repente, como que flechado pelo princípio de realidade, se aproximou mais de mim e perguntou, em tom choramingas infantil: Ela ligou pro Sr.? Ela quem, retruquei. O meu amor, aquela Loura maldita que não consigo esquecer. Pediu seu telefone pois queria agradecer pela crônica em que ela aparecia como personagem apaixonada pelo nosso imenso Tricolor. Ah, sim, ligou sim. E ela perguntou por mim, o canalha inquiriu ansioso. Não, meu amigo, não perguntou não.

O latin lover, depois de alguns segundos de profunda desolação, retomou, de modo inesperado, o olhar rútilo do possesso e esbravejou: O Fluminense, contra tudo e contra todos, será o campeão brasileiro de 2011! Está inscrito em cada canto desta cidade! Está inscrito nas nuvens, no dorso dos golfinhos, na baba dos cães de guarda! E fez menção de sair apressado do bar. Peguei-o pelo braço e perguntei: aonde você vai? E a moça na mesa te esperando? E o sujeito, agora já completamente revirado, respondeu lustroso: vou procurar minha Loura Indignada! Não vivo sem ela! E quanto à moça, já ficou pra trás na tabela, é flamenguista.

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