quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Uma maravilhosa pelada histórica

Amigos, estava eu aqui em casa, preso ao meu trabalho, diante da máquina de escrever, quando uma daquelas fomes incontornáveis se apossou de mim. Era uma terça-feira à noite, feriado nacional, e não havia nada em minha geladeira para comer. No dia da proclamação da república mais insosso dos últimos tempos, em que não se pressente qualquer manifestação de civismo lampejando no fundo dos olhos do cidadão comum, descubro – por meio da lei mais trágica: a da fome - que passei horas trabalhando feito um mouro, esquecido de mim, só me alimentando de café e fumaça de cigarro. Então, com o estômago grudado nas costelas, me sentindo um cão vadio em semana de escassez, em que nem o osso fiel do açougueiro da esquina sobra suculento em seu caminho, saí atrás de algum lugar que pudesse me ajudar a matar quem me matava. Depois de somente encontrar bares e restaurantes fechados, me deparo diante de um oásis reluzente, um mágico supermercado aberto vinte e quatro horas.

No momento em que me dirigia ao caixa do supermercado, com os produtos já selecionados no carrinho, me deparo, quase como que diante de uma aparição mística, com a figura pós-moderna do filósofo botocudo. De cocar, com os indefectíveis botoques no lábio inferior e nas orelhas, sem camisa, cheio de colares multicoloridos pendurados no pescoço, calça jeans, descalço, braceletes e tornozeleiras de penas, o índio do tronco macro-jê consultava em seu smartphone os últimos e-mails que acabara de receber.

Quando levantou os olhos da engenhoca, e me viu vestido com o manto sagrado tricolor, o sábio das selvas tropicais, como se me conhecesse há mais de mil anos, sentenciou: o Fluminense é um time cíclico, regido pela força selvagem do tempo das estações, não é um time de futebol preso às leis do tempo linear cronológico; daí, toda a dificuldade e encantamento de suas vitórias, de seus títulos memoráveis! Torcer pelo Tricolor das Laranjeiras é torcer por uma potência da natureza, imprevisível e fascinante, sempre abalando, com passos de maremoto, os limites da medida humana. Pode anotar aí, na agenda de registros dos grandes feitos, fã do clube mais charmoso do planeta, que amanhã, mais uma vez, o Flu calará as hienas e os parvos, e retornará à arena do Engenhão com uma nova vitória inquestionável e consagradora!

Vocês conseguem compreender, amigos, o que estava se dando ali, numa noite de feriado nacional, num supermercado deserto da Zona Sul do Rio de Janeiro? Um representante de nossa brasilidade mais profunda, aculturado e modernizado, em êxtase diante da visão da mística camisa das três cores que traduzem tradição, proferindo, sem mais nem menos, um discurso que concentrava história e profecia, essência e mutação, passado e futuro do tricolor mais amado do Brasil!

Fiquei por alguns instantes abestalhado, boquiaberto diante daquela figura insólita e onírica, até que abri um sorriso e retruquei: sábias palavras, meu ilustre camarada, sábias palavras! E dei um inesperado abraço no filósofo botocudo, que, aristocraticamente, me cedeu a vez na fila, já que comprava apenas uma garrafa de uísque e eu estava carregado de toda sorte de alimentos.

Em casa, lavando meus braços e minhas roupas, que ficaram manchados do abraço de urucum dado no filósofo botocudo, pensei: a torcida do Fluminense é realmente encantadora! Abriga gente de todas as classes, de todas as culturas, psicologias, etnias! E, num estalo, me lembrei do vaticínio do Velho do Restelo, dizendo que no jogo de quarta-feira teríamos mais torcida do que no jogo contra o América Mineiro. E não é que, no dia seguinte, na hora da esperada peleja, o Velho estava certíssimo? Haviam 11 mil vivos e 31 mil mortos lotando o estádio do Engenhão! Ao todo 42 mil pessoas, mais do que as 40 mil que mostraram, na derrota acachapante do domingo passado, a exuberância sublime da torcida mais doce e fanática do mundo.

Fato comprovado pela cantoria, entoando o vasto repertório de paródias e pregões de amor ao Flu, que os torcedores sustentaram durante os noventa minutos em que se deu a pelada sagrada. Sim, porque, antigamente, somente os Fla-Flus propiciavam espetáculos dessa natureza, em que os contendores, os Irmãos Karamazov do futebol, se lançavam abertamente, com pouquíssima técnica e muita raça, à luta desbragada pela vitória. Como se estivéssemos presenciando uma cena de disputa familiar entalada na garganta dos membros por gerações, que, de repente, deixassem cair os entraves do decoro, e se abrissem para o confronto desnudo e franco! Uma mágoa e um amor desmedidos sendo solucionados no embate direto, corpóreo, entre oponentes umbilicalmente unidos.

E Fluminense e Grêmio são também parentes em suas essências cíclicas de trajetória. Ambos já foram ao inferno mais degradante e ao sétimo céu do futebol em suas histórias. O que vimos no estádio João Havelange foi um duelo de titãs, no qual uma hora um, outra outro, passava à frente do placar e dava sinais de que sairia dali com uma vitória maiúscula, grandiloqüente, consagradora.

Mas coube ao Autêntico Tricolor - pois os outros são times de três cores - a glória final, num placar idêntico, 5 a 4, ao que foi, até então, considerado o melhor jogo do campeonato brasileiro de 2011 (honra agora transmitida à batalha de hoje): Flamengo e Santos. Reparem que Flamengo e Fluminense estão envolvidos nesses dois jogaços, como se, nos tempos atuais, a tradição dos confrontos entre os dois começasse a se espraiar para outros adversários, menos interligados pelo sangue, mas tão empenhados na luta aberta, espetacular, peladeira, e que sempre reserva áureos momentos de alta cultura futebolística, em que jogadas inventivas surgem do nada e se concretizam como obra eterna.

Vocês perguntarão, por que pelada, então? Porque impregnada de falhas bisonhas, de entregas de ouro de diversas naturezas dos homens da defesa e meio-campo, em ações patéticas apenas passíveis de acontecer com profissionais que se deixaram possuir por paixões íntimas incontroláveis. Os dois frangos solenes do goleirão Diego Cavalieri; a falha na bola alta da nova jóia de Xerém, Elivélton, que perdeu o tempo da jogada, deixando o adversário livre para marcar; a virada de jogo totalmente descalibrada de Mariano, propiciando o contra-ataque que gerou o terceiro gol do Grêmio. Momentos indefectíveis do mais alto grau de patetismo, apenas presente nas batalhas míticas em que sangue, suor e lágrimas são derramados nos gramados em que o esporte bretão tem lugar.

Sim, e se o embate é mítico, certamente foi protagonizado por algum herói, um Aquiles, um Odisseu, um semideus que tenha desequilibrado a balança para um dos lados da disputa acirrada. E, graças às divindades do futebol, o herói eleito para conduzir um dos times à vitória usava o manto verde, branco e grená e tinha um nome à altura: Fred. O artilheiro do engenho e da arte, tantas vezes questionado por suas noitadas e displicências pouco profissionais, foi o autor da façanha inaudita de marcar quatro gols numa única partida.

E que gols! O primeiro, num desvio sutil de cabeça, em meio a uma multidão de zagueiros, a partir de um cruzamento ferino feito por Mariano pela direita do ataque; o segundo contou com a participação luxuosa de mais um daqueles passes milimétricos, digno de um Gerson, feito pelo mago Deco, lançando a bola quase do meio de campo, para deixar Fred na cara do gol; o terceiro foi um pênalti batido como devem ser batidos os pênaltis: sem brincadeira, forte e seco, no cantinho esquerdo do arco do goleiro; o quarto foi uma pintura neoclássica: teve uma embaixadinha mole antes da puxeta sutil, quase de costas para as traves, dada por Fred com tranquilidade mineira, com a bola ultrapassando, lenta e leve, quase entediada, a linha do gol. Sóbis - um segundo herói tão fundamental como o mirmidão Pátroclo em Tróia – desdobrou a performance excelsa de Fred com um golaço de fora da área, no ângulo, um petardo que o goleiro gremista ainda teve forças para chegar e tocar na bola, mas não para desviá-la de seu fatídico destino: o fundo das redes.

Amigos, quando saí do estádio comemorando a frenética vitória do Flu, feliz da vida entre os mortos efusivos e vivíssimos tricolores ao meu redor, encontro com a viúva botafoguense sentada na calçada. Em seu estilo de melindrosa dos anos 20, como sempre, de piteira e cigarrilha, cabelo a la garçonne, boquinha vermelha em forma de coração à Gloria Swanson, a pele branquíssima, vestido tubular de seda, meias beges, a darling mirava o nada com um olhar distante e profundo. Estava com saudades sombrias do falecido, certamente. Estranhei que ela estivesse ali, na sarjeta, na saída de um jogo do Fluminense, muito embora sem perder a pose, claro, de quem sempre está preparada para uma próxima festa regada a charleston e champagne.

Ao me reconhecer, se levantou, lépida como uma menina, e me abraçou carinhosa. Perguntei se estava tudo bem, etc e tal. E ela me respondeu sem pestanejar que sim, que estava ali pois tinha participado de uma pajelança com o filósofo botocudo pela manhã e ele dissera que recebera uma mensagem do além de seu marido, na qual afirmava, categórico, que não perderia o jogo do Fluminense nessa noite por nada. Abri um sorriso, dei meu braço para a viúva botafoguense, e fomos terminar a noite no Lamas, entre baforadas de ópio e goladas alegres de chandon. Acompanhados, evidentemente, de seu adorado falecido, o Tricolor de Lábios Roxos, mais vivo do que nunca, depois dessa maravilhosa pelada histórica.

2 comentários:

  1. Muiiiito bom! ;)
    Nelson bem podia estar vivo e ler essas crônicas tricolores maravilhoooosas do meu querido Mestre!
    E como disse o Sr Tricolor de Lábios Roxos: "A Taça já é nossa!"
    Grande abraço,
    Vanda.

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